Ronaldo Anicá, 26 anos, do povo indígena Galibi Marwono, aprendeu desde menino com os mais velhos: quando um tipo de formiga chamada taoca, de cor vermelha, aparecia na aldeia Tukay (AP), era sinal de que não choveria. Já se avistasse uma taoca preta, a chuva era certa. “Agora, quando vemos uma taoca vermelha, pode chover”, diz. “Os conhecedores dizem que a taoca indicou certo. Quem está confuso é o tempo.”, relata se referindo aos indicadores temporais.
Ronaldo é agente ambiental indígena da Terra Indígena (TI) Uaçá, localizada em Oiapoque, no Amapá, às margens da BR-156. Desde 2019, ele observa e registra os chamados “marcadores de tempo”, indicadores naturais das tendências do clima. É por meio do canto de pássaros, da aparição de animais e da posição de constelações que alguns povos indígenas se comunicam com o meio ambiente e guiam suas atividades no dia a dia.
Mas, com as mudanças climáticas, algumas das referências milenares já não dão conta de prever as estações, prejudicando o cotidiano na aldeia. “Esse ano começou a chover no final de fevereiro. Não é o certo. Em novembro já deveria estar caindo chuva”, relata Ronaldo, que também utiliza um pluviômetro para registrar o volume de precipitação. O agente indígena acompanha ainda as mudanças no nível do rio e dos igarapés.
Mudanças que preocupam
A imprevisibilidade impacta diretamente os povos que vivem em parceria direta com a natureza. Fica difícil saber quando plantar e colher, já que fortes chuvas inesperadas podem deixar a plantação debaixo d’água, impedir a queima da roça e atrair pragas. “Antes aparecia praga, mas dava para salvar algumas espécies de maniva. De 2020 para cá, o fungo veio mais forte pelo excesso de chuva e não deu para salvar quase nada”, conta ele. “A mandioca é de onde as famílias tiram seu sustento. Ficamos sem de 2022 a 2023.”
Há dois anos, a proliferação de pragas afetou aproximadamente 80% das roças indígenas na região, de acordo com Rita Becker, coordenadora do Programa Oiapoque, do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), organização responsável pela formação de Ronaldo e de outros 37 indígenas como agentes ambientais, em parceria com o Instituto Federal do Amapá (IFAP). A crise fitossanitária foi tão grave que o governo do Amapá declarou situação de emergência.
No outro extremo, estão as dificuldades com o agravamento inesperado da seca. A falta de chuva prejudica o acesso a locais importantes aos povos, desde áreas de roça até regiões de coleta de sementes, frutos e remédios tradicionais. “Devido ao Oiapoque ser uma região de campos alagados e ilhas, quando está muito seco não é possível chegar a esses lugares”, explica a coordenadora.
Escrito nas estrelas
Do povo Piratapuya, Rosivaldo Miranda exerceu a função de agente indígena de manejo ambiental (Aima) por dez anos na região Açaí Paraná, no baixo rio Uaupés, na TI Alto Rio Negro (AM). Nos primeiros três anos, o monitoramento era comandado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e registrado em um diário, mas passou a acontecer em tablet nos últimos sete anos, quando o Instituto Socioambiental (ISA) ficou à frente da iniciativa. “Facilitou nossa pesquisa. Todo dia eu respondia às perguntas do aplicativo a partir da observação do nível do rio, se era tempo de verão ou de inverno, frutificação, migração de aves e peixes e as constelações”, conta.
Entre as descobertas mais marcantes em uma década de pesquisa está a alteração de alguns indicadores de tempo. O sapo cururu, por exemplo, parou de cantar para indicar a enchente do rio. Já os besouros vermelhos, que apareciam a cada três anos na TI, reduziram o tempo de migração para um ano. Os animais servem de isca e de alimento para os Piratapuya.
Também se alterou o tempo indicado pelas estrelas. Na cultura Piratapuya, cada constelação indica uma época: de enchente, migração, plantio, pesca… “Hoje cai uma constelação e a época é diferente. A constelação está certa, a época é que não está”, diz. “Isso muda totalmente o ciclo da vida. A gente fica preocupado sem saber o que vai acontecer.”
A natureza dá sinais
Outra percepção é sobre o aumento de temperatura. Se antigamente era comum voltar da roça às 14h, hoje eles já não aguentam permanecer sob o sol das 10h. “Às 8h30 já está bastante quente. Às 9h30 não dá para trabalhar mais”, relata. Para se adaptar à mudança, alguns indígenas mudaram a rotina, indo para as roças no fim da tarde.
Rosivaldo é integrante da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas e, mesmo não sendo mais agente indígena, segue acompanhando as alterações nos indicadores do tempo de sua aldeia para amplificar a realidade local. “É importante divulgar o que está acontecendo para mostrar que as mudanças climáticas estão acontecendo, sim”, diz.
O indígena deixou de ser Aima pela baixa remuneração e falta de reconhecimento do cargo, mas luta para mudar essa realidade e voltar a exercer a função. “Sozinhos, os povos indígenas não vão conseguir chegar a uma solução possível. Precisamos de parceria com o poder público e o poder privado para estarmos bem preparados e organizados para lidar com essa situação.”
Agravamento dos efeitos
“Nem o inverno nem o verão começam mais no tempo certo. Isso descontrola a autonomia e a sustentabilidade da comunidade na questão da alimentação, da caça e da pesca”, resume Sineia do Vale, líder indígena da Serra da Lua (RR) e coordenadora do Departamento Ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Sineia é autora da primeira publicação indígena brasileira sobre mudanças climáticas, lançada há uma década. A pesquisa teve continuidade e, este ano, são quatro os estudos de sua autoria sobre a percepção dos povos originários sobre o clima.
Em dez anos, esses levantamentos concluíram que os efeitos do aquecimento global têm se agravado nas TIs. A água dos poços seca mais rapidamente, as sementes enfraquecem, a caça escasseia com a falta de frutos e os peixes se afastam para águas distantes, já que as dos igarapés estão cada vez mais quentes. Os dados foram usados como referência para o Plano Nacional de Adaptação (PNA) e na parte sobre povos indígenas na revisão do documento neste ano.
Os estudos de Sineia usam como base também os dados técnico-científicos sobre clima do Sistema de Observação e Monitoramento da Amazônia Indígena (SOMAI), uma resposta do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) à demanda indígena de planejar a gestão de seus territórios diante da imprevisibilidade do clima no contexto atual.
Indicadores Temporais
A partir de fontes públicas de informação, a plataforma traz dados atualizados sobre temperatura e chuva média anual e mudanças de temperatura e chuva, calculadas para o cenário de baixas e altas emissões de gases do efeito estufa, seca anual e aridez do ar. A ferramenta é usada em 46 TIs na região amazônica.
O IPAM e parceiros indígenas, como o próprio CIR e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), facilitam cursos sobre mudanças climáticas onde os indígenas aprendem a operar o aplicativo e a consultar cenários futuros. “Com base na ciência indígena e em dados de satélite e da ciência não-indígena, é possível propor planos de enfrentamento às mudanças climáticas”, diz Martha Fellows, pesquisadora de ciência do IPAM. “Esses povos têm uma relação intrínseca com o meio onde vivem, portanto, têm estratégias e modos para enfrentar as mudanças climáticas.”
Enfrentando as mudanças diante dos indicadores temporais
Entre as soluções que já estão sendo colocadas em prática pelo CIR estão viveiros de mudas e bancos de sementes, onde são armazenados os exemplares mais resistentes à seca e ao calor. Em mais de dez comunidades indígenas de Roraima, moradores escolhem as mudas de árvores e ervas medicinais prioritárias para fazer parte dos viveiros. O CIR promove encontros para que sementes e mudas sejam trocadas entre as comunidades.
Para TIs afetadas pela forte estiagem, a irrigação tem sido uma alternativa. A TI Anzol (RR) recebeu, no final de 2023, um projeto tocado pelo CIR, em que oito placas solares fornecem energia para irrigar uma plantação do tamanho de dois campos de futebol. O plantio, que inclui mandioca e milho, beneficia 18 famílias.
No Oiapoque, as soluções envolvem o tracajá, cágado importante para a alimentação e as tradições na comunidade indígena de Ronaldo e de outras aldeias da região. A espécie quase desapareceu nos últimos anos e a mudança do clima influenciou bastante. Em 2021, com o excesso de chuvas, por exemplo, os agentes indígenas observaram que esses animais não encontram locais secos para colocar seus ovos, que acabavam se perdendo. Além disso, a temperatura abaixo da média não deixou que o solo atingisse o calor necessário para os ovos eclodirem.
Aliados da conservação
O projeto Amigos dos Tracajás, apoiado pelo Iepé, Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão (AMIM), Funai e ICMBio, envolve o manejo e cuidado dos ovos e filhotes pela comunidade indígena, para o aumento e a segurança da espécie. Foram 16 mil filhotes de tracajás soltos no total. Somente em março deste ano, a iniciativa resultou na soltura de mais de 3 mil deles. Chegou a 90% a taxa de sobrevivência dos filhotes com o monitoramento e cuidado nos locais de desova realizados pelos agentes indígenas.
O projeto contribui para a conservação dos tracajás e aumenta a segurança alimentar dos povos indígenas, que podem caçar os animais depois de adultos, além de fortalecer o trabalho dos agentes ambientais. Após a iniciativa, lideranças das aldeias estabeleceram acordos de limitação de consumo de ovos e de tracajás pelos próximos dois anos.
Alerta para uma mudança de rumo
O levantamento realizado pelos agentes ambientais indígenas do Oiapoque identificou mais de 100 marcadores indígenas do tempo. Alguns deles estão descritos no “Livro dos Marcadores do Tempo: pesquisas indígenas sobre percepções ambientais e mudanças do clima”, material que tem sido utilizado pelos agentes ambientais e educadores indígenas para munir as crianças de informações sobre a emergência climática.
O estudo revela que os povos indígenas são altamente vulneráveis aos efeitos da mudança do clima, que impacta diretamente em seus modos de vida e práticas culturais, ainda que sejam os grandes protetores do meio ambiente. “É dramático observar que os que menos contribuíram para o aquecimento tem sido uma das populações mais afetadas”, lamenta Rita, do Iepé.
As florestas tropicais mais saudáveis do globo ficam em terras indígenas protegidas, segundo um estudo publicado na revista Current Biology em 2022. As TIs já demarcadas ou esperando demarcação foram as áreas que mais preservaram a vegetação nativa brasileira de 1985 a 2020, de acordo com levantamento do MapBiomas.
A forma como esses povos vivem impõe maiores barreiras ao desmatamento e favorece a segurança da floresta, bem como sua restauração. Dessa forma, segundo os estudiosos, garantir o direito das populações originárias ao território é fundamental para alcançar as metas globais de conservação e clima.
Indicadores temporais não mentem
Os povos indígenas são os primeiros a sentirem os impactos da mudança climática porque seus modos de vida estão diretamente conectados com a natureza, mas esse é só um sinal de que toda a sociedade deve ser afetada, aponta Sineia. “É um alerta não apenas para os indígenas brasileiros, mas para todo o mundo. É preciso tomar medidas de políticas públicas, tratados e acordos para não emissões”, diz a especialista, a única brasileira a falar na Cúpula de Líderes sobre o Clima, em abril de 2021. Sineia segue fomentando com conhecimentos indígenas as discussões para o enfrentamento da situação no Brasil e fora.
Para Rita, as consequências da mudança do clima na TI são um aviso para que a sociedade ocidental reavalie o atual modelo de desenvolvimento. “É um chamado para ouvirem e levarem a sério os conhecimentos dos povos indígenas, sua forma de se relacionar com o território – não como uma natureza objetificada, mas como uma rede de interrelações, em que os humanos também fazem parte”, diz.
Fonte: Martina Medina / Um Só Planeta
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