A agropecuária do Rio Grande do Sul teve um prejuízo sem precedentes causado pela perda das safras de 2024 com as enchentes no estado gaúcho. A estimativa da Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural é de danos em mais de 206 mil propriedades rurais, com 2,7 milhões de toneladas de soja perdidas e mais de um milhão de aves e 17 mil bovinos mortos. Segundo o MapBiomas, 64,2% do território ocupado pelo setor foram atingidos. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) calcula em R$ 3,3 bilhões os prejuízos ao agronegócio gaúcho. Assim, os produtores aliados aos órgãos públicos repensam saídas como a agricultura resiliente para diminuir as perdas e diminuir danos.
O valor de perdas deve subir no médio prazo. Como a chuva em excesso leva muita terra, os solos nas áreas de produção podem ter sido expostos à erosão e, consequentemente, à perda dos nutrientes de que as plantas necessitam. “Conforme a gravidade, os custos de recuperação do solo tendem a subir e impactar as próximas safras”, explica Isabel Garcia-Drigo, diretora do programa de Ciência do Clima, Uso da Terra e Políticas Públicas do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). “É uma conta que somente se fechará quando as águas baixarem, mas certamente será alta.”
As mudanças climáticas podem reduzir a produtividade da agropecuária global em 17%, de acordo com o World Resources Institute (WRI). Isso porque a produção rural depende diretamente das condições meteorológicas, incluindo nível de precipitação, intensidade de ventos e temperatura. O Brasil, que teve um terço do crescimento econômico em 2023 capitaneado pelo agro, é um dos países mais impactados.
Há saídas
“Em culturas como café, laranja, soja, uva e feijão, o aumento do número de dias consecutivos com temperaturas acima de 35ºC ou a alteração no regime de chuvas, podem prejudicar e até inviabilizar a produção em estados da região sul, sudeste e no centro-oeste”, destaca Daniel Caiche, professor de MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Esses impactos atingem diretamente a segurança alimentar do país e a segurança socioeconômica dos produtores.”
A boa notícia é que já existem ferramentas para lidar com os impactos, reduzindo as perdas e acelerando a recuperação do agronegócio frente à mudança do clima. Um Só Planeta entrevistou especialistas para saber o que é preciso para que o setor enfrente eventos climáticos cada vez mais extremos. Adotar incentivos econômicos para a adoção de práticas de baixo carbono, tornar mais precisa a previsão de eventos climáticos extremos por meio da tecnologia e escalonar soluções são alguns dos caminhos para aumentar a resiliência no campo.
Desmatamento e restauração
Restaurar a vegetação em propriedades rurais é o primeiro passo a ser adotado pelo setor agropecuário, a segunda atividade brasileira que mais emite CO2, logo após o desmatamento. O novo Código Florestal estabelece, desde 2012, que uma porção de todas as propriedades rurais precisa ter cobertura de vegetação natural. O problema é que nem sempre a legislação é cumprida. A estimativa é de que 20 milhões de hectares degradados ainda necessitem de restauração em áreas privadas no país. Outro ponto importante é frear o desmatamento para expansão agrícola, especialmente em áreas ecologicamente sensíveis.
De acordo com os especialistas, essas medidas estão longe de representar perdas econômicas. “Não há mais contradição entre ganhar dinheiro e proteção ambiental”, atesta Sérgio Schneider, professor de Sociologia do Desenvolvimento Rural e Estudos Agroalimentares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Os ganhos econômicos, aliás, podem ser significativos. Investir em agroflorestas pode garantir mais de US$ 699 bilhões em diversificação de receita para produtores rurais, de acordo com estimativa do WRI. Passivos ambientais, depois de restaurados com espécies nativas, podem gerar mais renda ao produtor a partir da comercialização de produtos florestais.
Ações em curso
A empresa de impacto social INOCAS, por exemplo, restaura pastos degradados plantando árvores de macaúba. A iniciativa melhora a qualidade do solo e garante bem-estar ao gado, com mais espaço de sombra. Com o fruto da palmeira brasileira, a companhia produz óleo vegetal, produto que se torna mais uma fonte de renda na propriedade.
A meta é restaurar um total de 30 mil hectares de pastagens degradadas nos próximos seis anos em 1.500 fazendas. Até o momento, 8% dessa área, ou pouco mais de 2 mil hectares, foram recuperados em 72 propriedades rurais.
Boas práticas
“Além do pesar pelas perdas de vidas – humanas, animais e de toda biodiversidade – e pelos prejuízos econômicos, essa tragédia trouxe uma percepção sobre o custo do despreparo“, afirma Drigo, para quem a adaptação a eventos extremos, com a construção de uma agricultura mais resiliente, teria diminuído os custos do desastre no RS. “A ciência agronômica brasileira, capitaneada pela Embrapa e centros de pesquisa das universidades públicas, já dispõem de todo um cardápio preventivo.”
O engenheiro florestal Giampaolo Queiroz Pellegrino, pesquisador de mudanças climáticas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), cita alguns dos itens desse cardápio, previstos no Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono, conhecido como Plano ABC, política pública de 2011. São eles: plantio direto, rotação de culturas, integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) e sistemas agroflorestais (SAFs).
Os SAFs integram em um mesmo espaço produtivo árvores e plantações enquanto a ILPF agrega pastagens a esse sistema. A diversidade fortalece o apoio mútuo entre as modalidades, reduzindo a proliferação de pragas na plantação, além de proteger o solo da erosão provocada por chuvas e enchentes, garantir regulação térmica e sombreamento para o gado, e ajudar na captura de CO2 da atmosfera. Segundo o WRI, pastos com árvores sequestram de 5 a 10 vezes mais carbono.
Já o plantio direto visa diminuir o impacto da agricultura sobre o solo fazendo a semeadura sem revolver a terra e usando palha como cobertura para manter a umidade e evitar erosão.
Colheita de resultados
Combinado com a rotação de culturas, em que os produtos cultivados mudam a cada novo plantio, esse sistema facilita o manejo de pragas e melhora a fertilidade do solo, diminuindo o uso de agrotóxicos, de adubação química e de recursos hídricos.
Em uma década, o plano ABC conseguiu reduzir 170 milhões de toneladas da emissões de CO2 equivalente, superando a meta prevista de 162 milhões de toneladas, segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Foram 26 milhões de hectares de pastagens degradadas recuperadas, 11 milhões de hectares de ILPF e 12 milhões de plantio direto implementados de 2010 a 2020. O Plano ABC+, lançado há três anos, tem uma meta ainda mais ambiciosa: reduzir a emissão de 1,1 bilhão de toneladas de CO2eq até 2030. O Plano ABC recebe financiamento do Plano Safra, instrumento da política de crédito agrícola para fomentar boas práticas e de onde vem a maior parte do investimento público em atividades rurais.
Agricultura resiliente : Proteção contra perdas
O seguro rural é um instrumento que visa proteger os agricultores contra perdas decorrentes de eventos climáticos adversos, garantindo a estabilidade financeira e incentivando investimentos na produção. Porém, sua adesão ainda é baixa, representando somente 11% do mercado. Na contramão da crise climática, a cobertura tem caído nos últimos anos: de 14 milhões de hectares protegidos em 2021 para 6,2 milhões de hectares no ano passado.
Nelson Ananias, coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), destaca a importância de expandir o serviço. “Todo ano, ao discutir o Plano Agrícola e Pecuário, a CNA cobra do governo cada vez mais recursos para que o seguro rural possa abarcar ainda mais propriedades”, diz.
Já o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc) vem sendo aplicado pelo Mapa desde a década de 1990. A medida analisa o tipo de solo, de cultivo e especificidades regionais para alertar os produtores sobre a melhor época para o plantio, reduzindo os riscos climáticos. Agricultores que adotam o Zarc, disponível pelo aplicativo Plantio Certo, têm acesso à subvenção pública no seguro rural.
“Reduziu-se o risco climático drasticamente a partir da adoção do Zarc”, diz Pellegrino, da Embrapa, sobre a ferramenta. “Além de não recomendar o plantio em regiões impróprias e onde as perdas são altas, ele também estimula práticas necessárias para a boa condição da cultura”, completa.
Agricultura resiliente: Esperança
Segundo o engenheiro florestal, o Mapa está testando um programa piloto que deve beneficiar agricultores que não apenas usam o Zarc, mas que também reduzem o risco climático na produção por meio de práticas sustentáveis como rotação de cultura e plantio direto. “Os agricultores poderão pagar menos pelo seguro e ter acesso a crédito mais barato”, diz. “São estratégias públicas de estímulo às boas práticas.”
Pellegrino admite que as medidas não podem evitar a ocorrência de eventos extremos, mas previnem um dano maior e permitem uma recuperação mais consistente. Segundo ele, após a tragédia no RS, está clara a impossibilidade de seguir a produção nas mesmas áreas e da mesma forma. O arroz, cultivado em áreas de várzea no estado gaúcho, poderia ser substituído por uma cultura voltada a locais secos, sugere. Outra medida de adaptação seria dar preferência a culturas de ciclo precoce, ou seja, que levam menos tempo entre plantio e colheita, caso das hortaliças. O objetivo seria reduzir perdas.
Tecnologias de prevenção e sustentabilidade
Outras tecnologias, como a Inteligência Artificial (IA), atuam na previsão de eventos climáticos extremos. A startup MeteoIA, fundada em 2018, desenvolveu a ferramenta MIA Agro, com modelos preditivos para o setor agropecuário. A partir da terceira semana de uso do sistema, a probabilidade de acerto de eventos secos e chuvosos é de 63%, segundo a empresa. Com base nas previsões climáticas, os agricultores podem se programar com até um ano de antecedência para se proteger de eventos extremos, fazer ajustes para aumentar a produtividade e otimizar o uso de recursos hídricos e de fertilizantes.
Aumentar a sustentabilidade no campo também está no radar das aplicações tecnológicas. Um exemplo é a parceria entre a fabricante norte-americana de máquinas agrícolas John Deere e a startup de robótica Blue River Technology. Juntas, elas desenvolveram equipamentos que, com base em câmeras e processamento de imagem, identificam ervas daninhas e aplicam herbicidas somente nos locais necessários. A técnica, chamada “See & Spray” reduz em até 90% o uso de agrotóxicos.
Outro exemplo de resiliência na agricultura internacional é o investimento holandês em agricultura em ambientes controlados, como estufas e plataformas flutuantes. “Frente à ameaça de inundações e ao aumento do nível do mar, investiu-se em agricultura em ambientes controlados, além da construção de um rico sistema de canais e diques para controlar a vazão das águas”, conta Caiche.
O especialista menciona também o caso de agricultores australianos que têm adotado o manejo integrado de pragas e doenças, combinando métodos biológicos, culturais e químicos para controlar as infestações de forma sustentável em um contexto de secas e ondas de calor frequentes. “Isso ajuda a preservar a produtividade das culturas, mesmo em condições climáticas adversas.”
O que falta?
Apesar dos esforços em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias adaptativas, especialistas veem grande parte da agricultura brasileira ainda despreparada para lidar com o aumento e a intensidades dos eventos climáticos. A área coberta por práticas adaptativas corresponde a apenas 16% da área total cultivada no Brasil, de acordo com Caiche.
Mas, afinal, o que falta para que as soluções já existentes sejam aplicadas no país e surtam efeito? “Nos campos de cima da Serra Gaúcha acontece uma agricultura ecológica vibrante”, diz Schneider. “Mas são poucos produtores, é preciso escalonar”, sugere. Para ampliar a adoção de boas práticas em território nacional, ele recomenda premiar agricultores sustentáveis e reduzir a burocracia envolvida, por exemplo, na certificação dos orgânicos. Isso porque o custo e o tempo envolvidos no processo levam muitos produtores a desistir. Outra ideia é criar métricas de produtividade em que as práticas socioambientais no campo sejam contabilizadas.
Falta de acesso a recursos financeiros e tecnológicos, resistência a mudanças, limitações de infraestrutura e políticas inadequadas são apontados como gargalos para escalar as soluções adaptativas no setor agropecuário, segundo Caiche. O especialista em mudanças climáticas e mercado de carbono recomenda investimento em ações educativas sobre os benefícios ambientais e econômicos da agropecuária sustentável e incentivos financeiros para compensar os custos de implantação, incluindo assistência técnica e capacitação.
Expansão
Já Drigo destaca a necessidade de aumentar a abrangência e a rapidez na implementação de políticas públicas adequadas e direcionar investimentos e incentivos do setor financeiro para os modelos adequados. “É preciso transformar o Plano Safra inteiro em motor da transição ecológica da agricultura e da pecuária em escala”, recomenda.
“O aumento da resiliência agrícola no país requer a colaboração e ação coordenada de diversos setores da sociedade”, diz Caiche. Políticas que incentivem práticas agrícolas sustentáveis e adaptativas, aumento da acessibilidade ao seguro agrícola, e promoção de pesquisa e educação voltada à inovação no setor devem estar entre as ações do poder público a nível nacional, estadual e municipal.
Os especialistas também apontam que o setor privado deve somar forças no desenvolvimento tecnológico de práticas sustentáveis. Implementar alertas para eventos climáticos extremos, sistemas de irrigação de precisão e de energia renovável podem ser fruto de parcerias público-privadas.
A academia ficaria a cargo de produzir e disseminar conhecimento científico, com produção de dados, tecnologia e capacitação de profissionais qualificados em um modelo de agricultura mais sustentável do que o atual. O desenvolvimento de variedades de culturas resistentes ao estresse hídrico, temperaturas extremas e pragas formam uma frente importante que pode ser compartilhada com o setor privado.
Envolvimento de todos
Por fim, a sociedade civil deve se mobilizar para pressionar por políticas públicas que priorizem uma agricultura mais resiliente. Os consumidores também têm o poder de construir uma nova realidade a partir de escolhas no dia a dia, preferindo alimentos orgânicos e com certificação de baixo impacto socioambiental, além de dietas mais saudáveis, baseadas em verduras, grãos e na redução da ingestão de carne.
Segundo os especialistas, os caminhos para enfrentar os riscos climáticos envolvem uma mudança profunda nos modelos agropecuário, econômico e comportamental. O impacto dessa escolha é imenso: seria possível alimentar 10 bilhões de pessoas, ou seja, 2 bilhões a mais do que a população mundial atual, sem sobrecarregar o planeta, de acordo com estudo publicado na revista Nature. Ou seja, além de tornar o setor mais resiliente às mudanças do clima, fazer essa alteração de rota garantiria um ambiente menos hostil à humanidade e às condições necessárias para a nossa permanência na Terra.
Fonte: Martina Medina / Um Só Planeta
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