Quando comandou uma franquia de supermercado em Málaga, no Sul da Espanha, entre 2018 e 2021, o paulista Lucas Infante ficou espantado com a quantidade de alimentos que iam parar no lixo por passarem da data de validade – de 20 a 30 quilos todos os dias, numa loja pequena. Apesar deste volume estar dentro da média do mercado e das ofertas que realizava para aumentar as vendas dos produtos próximos à validade, Lucas vivia inconformado com o desperdício de comida mesmo antes de empreender no ramo da alimentação. E percebeu, em 2020, que a pandemia agravou a situação, sobretudo no início, quando o fluxo de pessoas nas lojas era restrito.
Todos os dias, mais de um bilhão de refeições ou toneladas métricas – o equivalente a um quinto dos alimentos disponíveis para as pessoas – são desperdiçados por famílias (60%), restaurantes e outros serviços de alimentação (28%) e o varejo (12%) no mundo, de acordo com um relatório recente da Organização das Nações Unidas.
Por outro lado, 783 milhões de pessoas passam fome e um terço da população mundial enfrenta insegurança alimentar. E todo o desperdício de comida – ainda apta ou não para o consumo – que vira lixo, vira também emissões de metano, um gás poluente com potencial de dano à camada de ozônio 80 vezes maior do que o dióxido de carbono (CO2), piorando o aquecimento global e a crise climática. Juntamente com as perdas que acontecem durante a produção de alimentos, isso significa de 8 a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa – quase cinco vezes mais do que o emitido no setor da aviação.
Menos desperdício mais trabalhos
“Quando você está do outro lado do balcão, você sente no bolso o impacto financeiro do desperdício de alimentos”, diz Lucas Infante, de 36 anos, fundador da Food To Save. “Durante a pandemia isso se agravava ainda mais. Foi quando eu comecei a entender que não era simplesmente uma questão de demanda e oferta, tinham outros fatores que afetavam o que seria o excedente de produção e os produtos desperdiçados. Mergulhei nesse tema e comecei a me aprofundar”, lembra o empreendedor, que é formado em Administração de Empresas pela PUC de Campinas, cidade onde nasceu, e possui especialização em Gestão de Negócios pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
Em dezembro de 2020, Lucas resolveu vir ao Brasil testar uma ideia de negócio que havia visto funcionar na Europa: criar um marketplace para vender o excedente de produção de padarias, restaurantes e supermercados, que estão bons para o consumo no dia, mas que, por normas, não poderiam voltar às prateleiras no dia seguinte. Ele convidou um amigo e ex-colega de trabalho para ajudá-lo a validar a ideia. Era Murilo Ambrogi, que hoje lidera Marketing da Food to Save, e na época estava trabalhando no iFood.
Eles criaram uma página da Food To Save no Instagram e foram pessoalmente bater na porta de estabelecimentos na capital paulista para explicar a ideia do negócio. “Muita gente nos chamou de malucos. Falavam: Como é que você vai vender um excedente numa sacola surpresa? Você não tem nem público. Em plena pandemia. Não tem aplicativo. A gente respondia: tem a nossa palavra, tem um mercado gigante, e tem alguém disposto a trazer essa solução à tona”, lembra o empreendedor.
Como o negócio surgiu
Depois de ouvir muito mais não do que sim dos estabelecimentos, eles conseguiram validar o negócio com amigos, parentes e amigos de amigos que formavam cerca de 100 seguidores na época. Atualmente, a plataforma conta com mais de 3.300 estabelecimentos cadastrados em 85 cidades brasileiras e possui mais de 280 mil seguidores nas redes. Mas para chegar nessa taxa, muito trabalho foi feito. Eles iam pessoalmente em padarias que topavam o teste, montavam uma sacola surpresa com excedentes de produção e postavam nos stories. Recebiam pedidos por mensagem direta e levavam as sacolas eles mesmos, ou por meio de entregadores.
Os amigos, ninguém famoso ou com muitos seguidores, postavam as fotos das sacolas que compravam e davam um feedback sincero. Com os feedbacks, criaram a ideia de as sacolas surpresas serem em três versões: doce, salgada e mista. Diferente da ideia original que viram na Europa, de ser uma sacola totalmente surpresa.
Em 22 de maio de 2021 fizeram a primeira “venda orgânica”, ou seja, sem a ajuda de conhecidos e sem publicidade. Então decidiram montar um site simples e funcional. Convidaram um terceiro sócio, Fernando dos Reis, amigo antigo de Lucas que se tornou diretor de operações e hoje é o CEO. Depois de 6 meses, conheceram o quarto sócio, Guido Bruzadin, de tecnologia, indicado por um conselheiro, e lançaram o aplicativo da Food To Save. Lucas vendeu a franquia do supermercado na Espanha e se mudou para o Brasil, para se dedicar integralmente à Food to Save – embora continue voltando com frequência à Málaga para ver sua filha.
App Food To Save
Pelo app é possível ter acesso à lista de estabelecimentos disponíveis nas cidades e encontrar aqueles mais próximos de sua casa. A oferta vai desde itens de hortifrutis e mercados até padarias e pizzarias. E marcas tão diversas como o badalado restaurante japonês Gurumê e a fabricante de chocolates Dengo. Os produtos escolhidos são em geral disponibilizados em um sacola ecológica, do tipo “saco de pão”, da Food To Save.
Em comemoração aos seus três anos, completos nesta semana, a startup se uniu com a Electrolux para presentear os usuários do aplicativo com um vale-brinde surpresa em algumas sacolas. A parceria vai distribuir seladoras a vácuo portátil com dois potes herméticos da marca para os “foodsavers”, como são chamados os usuários do app.
Uma nova cultura
O principal desafio desde o início sempre foi e continua sendo cultural: convencer as pessoas que uma comida que está próxima a data de validade estabelecida via de regra (ou “prestes a estragar”), está boa para o consumo se trata de estabelecer uma nova cultura. Isso se agrava num país que cultua a ideia de que “é melhor sobrar do que faltar” e onde se julga a qualidade de frutas e legumes pela aparência.
Ajuda o fato de que excedentes de produtos vendidos pela Food to Save aos clientes saem com descontos que variam entre 50 e 70% – preço de custo do estabelecimento, que também evita o desperdício financeiro. Para a startup, a barreira cultural pode ser enfrentada com mais conscientização sobre o tema. Até mesmo os quatro sócios mudaram seus hábitos neste sentido ao conhecerem mais o problema do desperdício. E a educação sobre reduzir perdas de comida e rever ideias de consumo também vale para os funcionários dos estabelecimentos parceiros da plataforma.
“O óbvio precisa ser dito. A gente está vendendo produto apto para consumo. É produto próximo ao vencimento. Não é um produto que ia para o lixo, não é berinjela nem mexerica podre. Muitas vezes, frutas e legumes que esteticamente aos olhos da maioria da sociedade não estão bons, estão bons sim”, explica Lucas. “É uma cenoura que está escurinha, que é só você ralar ou colocar em água gelada que ela está boa. Então a gente tem um trabalho de reeducação muito grande para falar de desperdício de alimentos, e o ouvido e olhar atentos para o consumidor e para os estabelecimentos de como fazer essa experiência ser cada vez melhor”, conclui.
Investimentos
Antes de buscar investidores no mercado financeiro, Lucas propôs uma condição aos sócios: o bootstrapping, que no empreendedorismo significa criar sua startup usando somente recursos próprios. “Tem que doer no seu bolso. A melhor forma de os sócios provarem que acreditam no negócio é colocando dinheiro próprio. Porque aí, realmente, demonstram que compraram a ideia”, resume. Cada um colocou o que conseguiu, e eles juntaram 250 mil reais para os gastos iniciais.
Quando as vendas começaram a ganhar escala e eles precisaram contratar os primeiros funcionários, encontraram investidores anjos e receberam o primeiro investimento externo – 200 mil reais. Depois, fizeram uma rodada de investimento semente na plataforma de crowdfunding Captable, de Porto Alegre, e captaram 1,7 milhão de reais.
Completando 3 anos de existência e com vendas crescendo em ritmo acelerado – o faturamento triplicou em 2022 e em 2023 – a Food To Save tem hoje cerca de 14 milhões de reais em caixa para investir em sua expansão. A empresa, que conta com oito dezenas de funcionários, pretende faturar 86 milhões de reais em 2024, e ainda não deverá equilibrar suas receitas com suas despesas, mas investidores de peso concordam com a estratégia: os escritórios de venture capital DSK Capital e High Partners, a gestora Spectra, o Grupo Trigo (dono das redes Gurumê, China In Box, Koni Store, LeBonton e Spoleto), e os investidores Paulo Camargo e João Branco, ex-CEO e ex-CMO do McDonald´s, e João Galassi, presidente da Associação Brasileira de Supermercados.
Números contra o desperdício
Para a startup, o propósito fala alto e vale muito: até agora, a Food To Save conseguiu evitar que quase 6 mil toneladas de CO2 fossem emitidas na atmosfera através da decomposição evitada de 3 mil toneladas de alimentos que teriam sido potencialmente desperdiçados – até o final do ano a estimativa é de evitar 4 mil toneladas em desperdício. Sem contar o volume de emissões evitadas com transportes, já que em 70% das sacolas vendidas, são os clientes que vão buscar.
Ao mesmo tempo, a Food To Save gerou receita incremental de 30 milhões de reais para os empresários e donos de estabelecimentos, e permitiu a economia de 100 milhões de reais por parte dos consumidores. O plano agora é melhorar o atendimento e a abrangência nas 85 cidades em que já está, antes de expandir para outros locais.
“Hoje existem muitas pessoas querendo consumir. Mas ainda falta oferta suficiente. Há mais de 30 mil downloads do app em Recife, cidade em que ainda não temos operação. Temos um trabalho de reeducação e conscientização para conseguir trazer mais parceiros ofertando seus excedentes de produção”, diz o empreendedor. É impacto positivo, uma sacola por vez.
Fonte: Aline Scherer / Um Só Planeta
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