Crise climática expõe desigualdades e cobra mudanças estruturais

Especialistas apontam que eventos extremos e soluções energéticas falhas ampliam vulnerabilidades e exigem justiça climática

Justiça climática

A crise climática deixou de ser uma previsão distante para se tornar uma realidade cotidiana, que atinge populações em diferentes regiões do planeta de forma desigual. No painel Poder, Justiça e Mobilização Climática: quem define o futuro do Brasil?,  na Conferência Sustentabilidade Brasil 2025, especialistas alertaram que os impactos dos eventos extremos já afetam a segurança alimentar, a saúde pública, a economia e, sobretudo, as populações mais vulneráveis. A defesa da justiça climática foi o fio condutor das falas, reforçando a urgência de transformar políticas e modelos de desenvolvimento que continuam aprofundando desigualdades.

Insegurança alimentar

Flávia Martinelli, bióloga e mestre com mais de dez anos de experiência em mudanças climáticas e atualmente líder de adaptação no WWF Brasil, trouxe exemplos do cenário global. Segundo ela, o derretimento de geleiras aumenta o nível do mar, contamina aquíferos e ameaça populações costeiras. Ao mesmo tempo, secas severas têm colocado em risco a produção agrícola em países como Botsuana, Zâmbia e Namíbia.

“No ano passado, nesses países, durante o período das colheitas, as chuvas foram mais de 50% abaixo da média esperada. Isso significou uma quebra de colheitas de mais de 40% para a área plantada com milho, e a produção total de grãos diminuiu em mais da metade em relação ao ano anterior”, relatou.

A crise climática, portanto, reorça deslocamentos em massa. Flávia lembrou que, no caso de Porto Alegre, “as inundações deslocaram cerca de 420 mil pessoas, mais do que a população de Vitória”. Situação semelhante ocorreu na África Ocidental, onde transbordamentos de rios destruíram ou danificaram mais de 139 mil casas, obrigando mais de um milhão de pessoas a deixar seus lares.

Desigualdade de gênero

A desigualdade de gênero agrava esse quadro. Flávia citou um estudo da ONU que aponta que mulheres e crianças têm 14 vezes mais chance de morrer em desastres do que os homens. A vulnerabilidade também é atravessada por fatores socioeconômicos e raciais. No Rio Grande do Sul, pesquisa mostrou que metade das famílias com renda de até dois salários mínimos perdeu casa, móveis ou sustento, enquanto entre famílias com renda de cinco a dez salários mínimos apenas 13% relataram prejuízos. Entre os entrevistados, 52% das pessoas pretas tiveram perdas, contra 40% das pardas e 26% das brancas.

Os efeitos do calor extremo reforçam essa desigualdade. Flávia destacou um estudo com nove milhões de registros de óbitos em 14 regiões do Brasil. De acordo com a pesquisa, mulheres, pessoas pretas e pardas e aquelas com menor escolaridade morrem mais em ondas de calor, mesmo expostas às mesmas condições ambientais. O caso mais extremo foi registrado em Cuiabá: “A probabilidade de uma mulher idosa preta morrer devido ao calor excessivo foi de 200% a 300% maior do que se fosse uma mulher branca”, afirmou.

Agro e justiça climática

O advogado Thales Machado, especialista em Direito Ambiental e assessor da Conectas Direitos Humanos, chamou atenção para os riscos de o planeta ultrapassar marcos irreversíveis. Ele apontou dados do Copernicus, programa espacial europeu de observação da Terra, que aponta o aquecimento global de 1,5ºC como realidade. “O aquecimento é inquestionável. Por exemplo, temos o bioma amazônico, que já apresenta sinais de ponto de não retorno, o que pode levar à savanização”, explicou.

Machado lembrou ainda que o Brasil registrou recordes históricos de temperatura, como os 44,8 ºC em Água Clara (MG), em novembro de 2023. “Estamos chegando a um ponto em que não será possível caminhar nas ruas sem algum efeito adverso, mesmo para adultos saudáveis. Para crianças, idosos e pessoas com deficiência, o risco é ainda maior”, alertou.

Na análise do advogado, o setor agropecuário brasileiro é peça central desse cenário. “O Brasil tem mais cabeças de gado do que pessoas. O agronegócio avança sobre biomas, incentiva a monocultura e exporta sua produção, especialmente soja para ração animal na China. Enquanto isso, quem alimenta o Brasil é a agricultura familiar”, disse.

Para ele, insistir nesse modelo é um contrassenso: “Quando a Amazônia chegar ao ponto de não retorno e não houver mais floresta para desmatar, o agronegócio entrará em crise econômica. E então teremos de dizer: ‘A gente já avisou durante todo esse tempo’”.

Transição energética ou adição energética?

Cristiana Losekann, doutora em Ciência Política, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenadora da rede de pesquisa Climatizando, questionou a ideia de transição energética defendida em políticas atuais. “O que vemos não é substituição de matrizes, mas adição. Todas as fontes continuam crescendo, fósseis e renováveis. Dessa forma, se não falarmos em redução de consumo, continuaremos reproduzindo o mesmo sistema que gera a crise”, afirmou.

Ela destacou um relatório do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás, cujo lema é “Um futuro descarbonizado não será um futuro sem petróleo”. Para Cristiana, isso revela que não há intenção de reduzir efetivamente a dependência de combustíveis fósseis.

Losekann alertou para o foco em mecanismos de mitigação que podem se transformar em novas oportunidades de negócio, em vez de enfrentar os conflitos socioambientais. “A gente realmente acha que o problema do clima vai ser resolvido com patinete elétrico e plantação de eucalipto? Eu acho que não”.

Justiça climática como horizonte

Os painelistas também apontaram caminhos. Para Flávia Martinelli, a COP30 representa uma oportunidade de reposicionar o debate. Ela lembrou trecho da carta do presidente da conferência, André Corrêa do Lago: “Política climática só será efetiva se promover transformações socioeconômicas, educação, redução da pobreza e das desigualdades. Assim, a equidade e a justiça para os mais vulneráveis devem basear todos os fluxos de trabalho e trilhas negociadoras da COP”.

Cristiana Losekann reforçou que a realização da conferência em um país democrático amplia a possibilidade de justiça climática, e da participação social e da realização da Cúpula dos Povos, espaço em que movimentos sociais poderão tensionar agendas e denunciar falsas soluções.

Thales Machado, por sua vez, destacou a agricultura familiar como modelo alternativo, capaz de aliar produção de alimentos, preservação ambiental e justiça social. “O agronegócio, por exemplo, alimenta o exterior. Mas quem pode garantir soberania alimentar ao Brasil é a agricultura familiar”, afirmou.

O consenso entre os especialistas é de que não há saída possível sem enfrentar desigualdades. Além disso, os dados apresentados mostram que mulheres, populações negras, pobres e tradicionais estão na linha de frente da crise, sofrendo perdas desproporcionais.

Como resumiu Cristiana, “se continuarmos fazendo políticas de forma compartimentalizada, sem enfrentar interesses e relações de poder, estaremos apenas criando uma ficção de política climática”.

O desafio, portanto, vai além da redução de emissões ou da adoção de novas tecnologias. A crise climática escancara a necessidade de um pacto social e político em torno da justiça climática — princípio que busca não apenas enfrentar os impactos ambientais, mas também corrigir as desigualdades históricas que tornam alguns grupos mais vulneráveis que outros.

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