Há 234 milhões de cabeças de gado no Brasil, mas o governo federal não tem muita clareza sobre onde e em que condições elas estão. Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, a atividade econômica está presente em 2,5 milhões de propriedades, desde grandes grupos até pecuaristas de pequeno porte, nos cinco biomas. Diante desta complexidade, é um consenso entre as iniciativas público e privada que obter um ‘censo demográfico’ -rastreabilidade- do rebanho bovino se faz necessário.
Mais do que preciso, conseguir identificar os animais agora se mostra urgente. O contexto é de que o Brasil possui o maior rebanho bovino do mundo e é o maior exportador da commodity também. Se antes, o fator sanitário já era motivo suficiente para o país demonstrar controle sobre o paradeiro do boi – em casos como a contaminação por febre aftosa, por exemplo –, hoje em dia o mercado também deseja saber o percurso do gado por requisitos ligados à sustentabilidade.
É neste ponto que passa a pesar, em conjunto, as condições de vida do bovino e das propriedades rurais pelas quais ele passou ao longo dos ciclos de cria, recria e engorda, até ir para o frigorífico. O Brasil, portanto, despertou para a necessidade de averiguar a relação do animal com documentos como Cadastro Ambiental Rural, áreas embargadas pelo Ibama ou denúncias no Ministério Público Federal.
Contagem regressiva à rastreabilidade
O enredo que fomenta a análise conjunta destas informações é a mudança climática e do uso da terra. Logo, implementar a rastreabilidade no país de forma robusta é para ontem, pois diversos consumidores – e países – dão sinais claros de que não querem comprar qualquer produto que tenha vínculo com a degradação de florestas.
A pressa do Brasil tem data marcada. Um dos deadlines previstos é do Regulamento Livre de Desmatamento da União Europeia (EUDR), cujos requisitos para a importação de commodities brasileiras serão aplicados a partir de 30 de dezembro de 2024. Não por acaso, muitos protocolos comerciais com exigências atreladas ao rastreio bovino entram em vigor em 1º de janeiro de 2025, conforme comenta Netto Schimansky, presidente da Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável.
“Esse é um dos grandes problemas à frente, porque a gente sabe que [a data] não é factível, mas vejo que os atores do setor vão pressionar um pouco mais rápido para isso acontecer”, ele afirma. Este é o esforço da Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável desde que conseguiu aproximar governos, empresas e sociedade civil para ampliar o debate e desenvolver uma solução conjunta. Afinal, a prática do rastreio consta na legislação do país.
Além disso, há de se considerar a COP30, a ser realizada em Belém do Pará, em 2025. O maior evento global sobre mudanças climáticas organizado pelas Nações Unidas põe o país em posição de dar transparência sobre a sustentabilidade na produção de alimentos, sem esquecer do social e da governança. Contar com dados que ajudem no rastreio e organização de informações do processo produtivo se faz necessário em uma aliança entre o agronegócio, tecnologia e a agenda ESG.
Conformidade à lei – mas como?
A Lei para Aplicação da Rastreabilidade, nº 12.097/2009, foi feita para garantir o registro e acompanhamento das informações referentes às fases da cadeia produtiva das carnes de bovinos e de búfalos, rastreando um animal ou grupo de animais durante todos os estágios da sua vida, além do transporte, processamento e distribuição.
No texto, publicado em 2009, o presidente Lula assinava que a rastreabilidade seria implementada com base em cinco instrumentos. Para o produtor estar dentro da lei, ele precisa da Guia de Trânsito Animal (GTA); a nota fiscal de compra e venda; registros oficiais dos serviços de inspeção e no âmbito do setor privado, e apresentar no bovino uma marca permanente e auditável para identificação do proprietário, como tatuagem.
O documento conhecido como GTA divide opiniões. Isso porque é considerado pelos órgãos públicos como sigiloso, e assim não atende à necessidade da transparência, segundo Netto Schimansky. Outra questão é ele estar sob a esfera estadual e não haver um banco de dados nacional que congregue todas as origens e rotas.
Dessa forma, encontrar todas as fazendas em que o animal transitou, entre cria, recria e engorda, resulta em uma ramificação de propriedades, sem qualquer precisão. Logo, a forma como o documento foi pensado não atende aos detalhes que importadores e varejistas têm pedido do ponto de vista ambiental.
Mais do que números, indivíduos
“Hoje, o Brasil tem a GTA, mas ela não tem histórico, não serve como documento de rastreabilidade, mas de sanidade. Cada movimentação desse animal gera um número de lote, referente a um grupo de animais, e cada vez que ele passa por uma fazenda esse histórico é perdido”, explica Netto.
Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira da Indústria de Exportadores de Carne (ABIEC), diz que o rastreio por lotes é complicado por “abrir uma árvore de possibilidades”. “Então, esse é o problema da GTA, você não tem certeza de onde o boi veio”. A agenda climática que recai sobre o Brasil, inclusive nos encontros do G20, pede uma resposta para este paradeiro.
Quem também fala sobre a GTA é Caio Penido, pecuarista da região da Serra do Roncador, no Mato Grosso. Ele circula entre os diferentes atores desta discussão. Também conta que um dos receios do setor é de que os profissionais com prática ilegal tentem manipular a GTA. Dessa forma, prejudicando a finalidade do documento, que é acompanhar o trajeto pelo viés da saúde do animal.
“A GTA foi criada para ter controle sanitário e ter uma eficiência no combate de casos de doenças. O medo é que a partir do momento que o uso da GTA serve para rastrear o desmatamento, os produtores que estão com problemas ambientais comecem a omitir informações e termina gerando um risco sanitário para o país”, afirma.
Medidas anteriores a rastreabilidade
Antes da GTA, já havia sido desenvolvida uma alternativa de rastreio por animal: o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov). Criada em 2002, a ferramenta foi implementada como voluntária aos pecuaristas interessados em exportar. E, então, estagnou. Dos 2,5 milhões de propriedades atuante na pecuária, apenas 1.200 estabelecimentos mostram detalhes de cada cabeça de boi, comenta Sampaio.
O diretor da ABIEC diz que o Sisbov foi construído para atender ao mercado da União Europeia na época. Ele concede informações apenas a respeito dos últimos 90 dias do animal, sendo que o ciclo de vida é 3,5 anos. Mas os protocolos internacionais mais variados pedem o conhecimento de toda as fases do gado, e sem estes dados não é possível diversificar mercado.
“A demanda da Europa é que esse animal esteja na área habilitada do Estado para exportação nos 90 dias antes do abate e informe a propriedade dos últimos 40 dias. Nesta fazenda, tem que haver identificação 100% individual, mas o sistema é voluntário e parcial. A rastreabilidade individual daria o caminho direitinho do gado, se aplicada lá no começo”, comenta.
Saúde animal e documentos fundiários
O setor se vê na obrigação de unir dados sanitários e fundiários, se quiser continuar sendo relevante na pecuária mundial. A tarefa é desenvolver uma forma de identificação para que nunca se perca o histórico do animal. Isso desde a primeira movimentação até o destino do abate.
Estão a cargo desta missão no Ministério da Agricultura e Pecuária os secretários Carlos Goulart, de Defesa Agropecuária (SDA), e Renata Miranda, de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (SDI). A SDA se preocupa exclusivamente com a questão sanitária, enquanto a SDI está se ocupando de soluções para garantias de sustentabilidade na produção. Em relação a isso, Renata Miranda ressalta, no entanto, que “pecuária rastreável não é sinônimo de pecuária sustentável”.
Fonte: Martina Medina / Um Só Planeta
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