Quando eram colegas de doutorado em Química na Universidade Estadual de Campinas, no laboratório de pesquisa de materiais, Carla Fonseca e Silmara Neves descobriram que tinham um sonho em comum: transformar conhecimento científico em produtos que pudessem gerar impacto socioambiental positivo. Juntas elas fundaram a IQX, que fabrica aditivos para viabilizar a transformação de plásticos de difícil reciclagem em novos produtos -como embalagens plásticas.
Só em 2023, a solução que a dupla de cientistas empreendedoras desenvolveu evitou que 300 toneladas de embalagens plásticas fossem destinadas para aterros sanitários e incineração. Além de evitar que esses itens virassem emissões nocivas, gerou a mesma quantidade de resina reciclada, que retornou ao processo produtivo – um exemplo de logística reversa e economia circular.
O sonho começou a virar realidade em 2011, primeiro como uma empresa de soluções para equipamentos de proteção individual (EPIs), a partir de um aditivo aplicado em luvas e borrachas usadas para evitar descargas elétricas em trabalhadores nas linhas de montagem de diversas indústrias, como a de eletroeletrônicos.
Em 2015, elas descobriram a demanda por reduzir desperdícios nas indústrias de sapatos de borracha e de embalagens plásticas para alimentos e cosméticos. Em 2017, criaram o principal produto da empresa: o aditivo IQX para facilitar a reciclagem de embalagens flexíveis, multicamadas e de uso único; aumentar a qualidade do reciclado e compensar financeiramente o processo de transformação.
Efeitos progressivos
“Alimentos embutidos, como salsicha, salame e também queijo, a gente olha para a embalagem e a impressão é de ser um plástico único, mas são várias camadas, cada uma capaz de fazer uma barreira de proteção contra umidade, oxigênio, para fazer o produto durar mais, ter um tempo de prateleira maior e evitar desperdício”, explica Silmara, cofundadora e sócia da IQX.
Ao evitar que restos de embalagens plásticas sejam enviadas para aterros sanitários e incineração, evita-se também a emissão de gases tóxicos e de efeito estufa (GEE), como o metano (CH4) – gás 20 vezes mais nocivo para o aquecimento global do que o dióxido de carbono (CO2). Além disso, ao reciclar plástico, reduz-se o uso de matéria-prima virgem de origem fóssil, cujo processo de extração e refino também geram emissões significativas de GEE, além de outros riscos e impactos ambientais.
“Para cada tonelada de plástico que deixa de ir para o aterro são gerados mais de três empregos de catadores, que na maioria são mulheres chefes de família”, acrescenta a empreendedora. A empresa também presta consultoria em inovação em metodologia científica e desenvolvimento de materiais.
Dupla dinâmica
A empresa e o doutorado não foram as únicas empreitadas que as duas realizaram juntas.
Elas ingressaram ao mesmo tempo em um emprego numa universidade particular, em Bragança Paulista. Dessa forma, nessa faculdade montaram os laboratórios de pesquisa e iniciação científica, atuaram como professoras e criaram os cursos de pós-graduação em materiais. Carla ficou cerca de 11 anos e saiu para se dedicar exclusivamente à IQX. Silmara ficou por 19 anos, e se dividia entre o emprego na universidade e o trabalho na startup.
As duas se conheceram durante a graduação em Química, também na Unicamp, mas se tornaram amigas mesmo durante o doutorado. Isso aconteceu porque engravidaram na mesma época, há 30 anos. O nascimento de seus filhos ocorreu com 15 dias de diferença, e as duas se ajudavam nos cuidados com os bebês, e sobretudo, com os experimentos do laboratório. “E aí nós começamos a entender que tínhamos aptidões complementares”, conta Silmara.
Os colegas também comentavam que as duas eram imbatíveis juntas. Carla ligando 10 equipamentos ao mesmo tempo para rodar os experimentos, e Silmara agilmente coletando os resultados, fazendo as correlações e escrevendo sobre as descobertas. Mais tarde, as duas se mudaram para o mesmo condomínio em Campinas, cada uma com suas famílias. “E nossos filhos são super amigos”.
Montanha de embalagens plásticas
O dinheiro para levar as soluções desenvolvidas em laboratório para a escala industrial foi conquistado por meio de quatro projetos. Todos inscritos na Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Elas receberam 2 milhões de reais ao todo, divididos em quatro vezes, em subvenção econômica não reembolsável. Essa, por vez, costumeiramente chamada pelo mercado de “investimento a fundo perdido”. “É um processo muito criterioso porque é um dinheiro público, tem um rígido corpo de avaliadores e prestação de contas para o governo do estado”, conta Silmara, sobre o programa de fomento à inovação. “O primeiro projeto levou quase um ano para ser julgado e aprovado”.
O tamanho do mercado potencial é imenso. De acordo com a IQX, mais de 1,5 milhão de toneladas de plásticos de difícil reciclagem por ano são destinados a aterros sanitários ou incineração no Brasil. Sem falar na poluição plástica dos oceanos, cheia de embalagens, e da possibilidade da empresa expandir para outros países. Cada 30 quilos do aditivo produzido pela IQX permitem a reciclagem de 1.000 quilos de embalagens. No ano passado, a produção total da IQX superou 10.000 quilos.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe plástico reciclado na fabricação de embalagens em contato direto com alimentos. Mas o plástico maleável reciclado pode ser usado para outras funções, como sacolas e embalagens de outros produtos.
Rota de Crescimento
Para crescer, as empreendedoras têm participado de plataformas de inovação aberta de corporações, como BRF, Braskem e Ambev. O Programa Mulheres Inovadoras, da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, além de contribuir com mentorias, também lhes rendeu a mineradora Vale como cliente e um novo produto no portfólio: um supressor de poeira que pode ser usado mesmo em outros setores, como a agricultura.
Outra cliente importante, das mais antigas e parceiras de inovação da IQX é a Embaquim, empresa de embalagens, presidida pela empresária Laura Canteiro. Essa empresa fabrica bolsas para o envase de cosméticos e outros materiais gordurosos, com a qual a IQX recebeu quatro prêmios em 2023. A startup desenvolveu uma solução para reduzir o desperdício de cosméticos que ficam no fundo das embalagens. “Conseguimos melhorar em 40% a recuperação dos produtos”, diz Silmara.
As duas sócias têm apenas dois funcionários, e a IQX tem capacidade para produzir 4 toneladas por mês do aditivo. Mas recorre a terceiros para aumentar o volume até 12 toneladas. Um aditivo para repelir o coronavírus de sacos de lixo, desenvolvido durante a pandemia, ajudou a equilibrar as contas da startup. Assim, logo em seguida começaram a lucrar.
Em 2023, o faturamento chegou a R$ 1,2 milhão, com crescimento de 56% diante do ano anterior. Até o final de 2024 a expectativa é mais que dobrar o total do valor das vendas, e continuar crescendo de forma exponencial e sustentável. Um dos próximos passos, por exemplo, é contratar uma empresa para calcular a redução de emissões de GEE gerada.
Novas tecnologias e desafios de comunicação
Entre os clientes, a empreendedora destaca grandes corporações signatárias do Pacto Global que precisam cumprir metas de sustentabilidade, como o uso de materiais reciclados. Destas mesmas empresas, a IQX espera apoio para divulgar sua tecnologia, ainda desconhecida pela maioria dos catadores, recicladores e população em geral. “Temos a demanda por uma campanha de conscientização que diga que as embalagens multicamadas, sujas ou não de gordura, já podem sim ser recicladas”, resume Silmara.
Ainda é muito comum que mesmo em lares onde as pessoas costumam separar o lixo reciclável continuem colocando as embalagens sujas de comida junto com o lixo orgânico que vai para o aterro. Até em cooperativas de catadores e recicladores a informação de que já existe tecnologia para lavar e reciclar as embalagens multicamadas de uso único ainda não está amplamente divulgada. (Independentemente da embalagem ter sido lavada em casa ou não, uma etapa de lavagem para remoção das impurezas vai obrigatoriamente ocorrer na recicladora.).
Outros desafios
Outro desafio é conseguir investimentos para continuar crescendo e gerar mais impacto socioambiental e climático positivo. No caso delas, pesa contra o fato de ser uma startup de produto físico, e não digital, que atrai menos o interesse de investidores. Além da necessidade de superar as barreiras do machismo e do etarismo na economia. “Uma startup em química tem uma jornada muito mais longa do que uma startup de tecnologia da informação, e a maioria das teses de investimento dos fundos está relacionada a produtos e soluções digitais. Então, já vemos certa restrição”, comenta. “Percebemos também que, mesmo indiretamente, existe a questão do etarismo, do gênero. Há uma certa desconfiança inerente”, diz a empreendedora de 57 anos, cuja sócia tem 59.
Elas procuram deixar claro que idade significa experiência, e que estão na jornada empreendedora por escolha. “Nós empreendemos com o propósito de que o conhecimento que adquirimos vá além, contribua na Educação e para diminuir o abismo que existe entre a universidade e a indústria. É isso que nos move”, diz. E ficar rica? “Melhor ainda, eu acho justo, porque a gente trabalha muito, mas a gente quer que essa riqueza ocorra para o catador, a cooperativa, e beneficie todos elos da cadeia de produção e a sociedade”.
Fonte: Aline Scherer / Um Só Planeta
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