Recentemente, o governo federal divulgou um estudo interministerial que revelou que ao menos 8,9 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco, em 1.942 municípios do país. Entre as dez cidades com maior número de locais nessas condições estão as capitais São Paulo, Maceió, Fortaleza, Belo Horizonte e Salvador. Isso acontece, pois não há um planejamento de urbanismo climático em larga escala no país. Se a situação já não é boa há décadas, com a intensificação das mudanças do clima o panorama tende a piorar, uma vez que essas populações passam a estar mais suscetíveis a desastres naturais como deslizamentos de terra, inundações e alagamentos – tal como vimos na tragédia no Rio Grande do Sul.
“A emergência climática aumenta em intensidade e frequência os eventos extremos e traz uma urgência ainda maior em solucionar diversos desafios históricos já enfrentados pelas cidades e administrações públicas”, ressalta a geógrafa Lara Caccia, especialista em Desenvolvimento Urbano e coordenadora de Adaptação Urbana do instituto de pesquisa WRI Brasil.
Segundo ela, populações que já são mais vulneráveis sofrerão ainda mais os impactos do clima e, além disso, as condições para adaptação e reconstrução do urbanismo serão, ainda, mais complexas. “A questão habitacional, com a limitação e falta de acesso à terra urbanizada e bem localizada, é central nesse debate, pois esses territórios sem infraestrutura de drenagem e saneamento aumentam a exposição e as vulnerabilidades das populações que ali residem”, completa.
Para não acentuar as desigualdades sociais e nos afastar da ideia de justiça climática, a especialista diz ser necessário considerar o novo cenário no planejamento de novos investimentos em infraestrutura e priorizar nas ações de adaptação das cidades essas populações historicamente negligenciadas.
Remover nem sempre é solução
Há várias maneiras de se caracterizar um assentamento em área de risco. Quando o tema é mudança climática, o foco principal recai sobre as áreas de habitações precárias situadas em encostas e beira de cursos d’água – locais mais sujeitos a deslizamentos e inundações, por exemplo. Pesquisadores e autoridades costumam classificar essas áreas de acordo com o grau de risco (em uma escala que vai de 1 a 4), a partir de uma análise rigorosa sobre as características geofísicas da região, além do regime de chuvas e o tipo de ocupação presente.
“Quando o risco é de grau 1 ou 2, o mais importante é avaliar a situação, promover a participação dos moradores e investir em gestão e mitigação dos riscos, com medidas de prevenção e obras de engenharia e habitação que possam melhorar a urbanização no local”, defende a arquiteta urbanista Isadora Guerreiro, professora doutora da FAU-USP e coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), na mesma universidade. Para isso, em sua visão, faltam políticas públicas efetivas de locação social e urbanização de favelas, além de escolas de arquitetura e urbanismo que formem profissionais capacitados para lidar com essa realidade de habitações e assentamentos precários.
Já quando se trata de área de risco de grau 3 ou 4, em alguns casos é preciso remover os moradores. “Essa é uma situação muito complicada e historicamente muito mal resolvida nas cidades. As remoções deveriam ocorrer com a participação das famílias e de maneira a solucionar a questão habitacional delas, o que quase nunca ocorre”, avalia a arquiteta. “Em São Paulo, as famílias removidas recebem um auxílio aluguel de R$ 400 por um ano, o que não resolve o problema. Temos hoje cerca de 22 mil famílias recebendo esse auxílio na cidade, que equivale à metade do preço médio de um quarto de favela. Resultado: muitas delas acabam migrando para outra área de risco ou ficando em situação de rua e ainda mais vulneráveis”, completa.
Urbanismo climático inclui gestão de riscos
Ainda assim, mapear os riscos é o primeiro passo para a solução do problema. “Nesse sentido, todo planejamento é um tipo de prevenção de riscos. Se as cidades fossem ocupadas conforme o seu Plano Diretor, a lei das APPs [Áreas de Proteção Permanente] e a lei de uso e ocupação do solo, por exemplo, teríamos muito menos riscos”, argumenta Renata Moreira, arquiteta urbanista, professora doutora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora de Infraestrutura e Riscos Urbanos.
Na prática, como a realidade é outra, uma vez identificadas as ameaças, é preciso dar respostas a elas: fazer escolhas para reduzir ou eliminar os riscos, realizar obras de infraestrutura, organizar um sistema de alerta aos moradores, entre outras alternativas. “O problema é quando a escolha do poder público é justamente deixar o risco acontecer. Porque quando ocorre um desastre, é mais fácil acessar recursos financeiros para obras emergenciais ou mesmo usar o desastre para uma ‘remoção étnica’ com o intuito de viabilizar alguma frente de renovação urbana”, lamenta a especialista.
SBN nas periferias
Uma via de ação que vem ganhando força como alternativa para mitigar ou eliminar ameaças também em áreas de risco são as Soluções Baseadas na Natureza (SBN). “São ações que utilizam processos e ecossistemas naturais para adaptar essas áreas ao enfrentamento de possíveis eventos climáticos extremos. Basicamente, são tipologias de infraestrutura verde, que é quando aproveitamos os serviços ecossistêmicos oferecidos pela natureza como parte da infraestrutura urbana”, explica a bióloga Juliana Ribeiro, gerente de projetos de SBN da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e articuladora de redes de disseminação dessas tecnologias.
Parques lineares, bacias de contenção de água de chuva, lagoas, biovaletas, telhados verdes e jardins de chuva são exemplos de soluções baseadas na natureza que podem ser implantadas em toda a cidade. Segundo ela, ainda este semestre, o Ministério das Cidades, por meio da Secretaria Nacional de Periferias e com a colaboração de diversas organizações, deve lançar o programa “SBN nas Periferias”, visando promover esse tipo de solução junto a prefeituras em todo o país. Ainda em 2024 o governo federal deve lançar também o Plano Clima Adaptação, outra ferramenta importante para incentivar as prefeituras a se mobilizarem em direção à resiliência climática para quem mais precisa.
Estratégia
Na visão da arquiteta Riciane Pombo, à frente do escritório Guajava Arquitetura, especializado em consultorias e projetos urbanísticos que utilizam Soluções Baseadas na Natureza para organizações e prefeituras em todo o país, as SBNs são um meio interessante de combinar infraestrutura cinza (obras de engenharia) com infraestrutura verde, trazendo a natureza de volta à cidade por meio de biotecnologias que reduzem inundações, enchentes e alagamentos.
Assim, entre os projetos que já realizou, Riciane destaca uma contenção de encosta com SBN na Cidade Tiradentes, região periférica na zona Sul de São Paulo. “Lá a CDHU vai remover as famílias que estão hoje em cima do córrego, praticamente, mas recuando as habitações apenas alguns poucos metros da margem. Também redesenhamos um trecho do córrego que estava muito retificado, para que fique mais natural e, portanto, seguro em relação à vazão da água”, explica a arquiteta, responsável pelo projeto da estação de tratamento de esgoto em wetland de escoamento vertical na Estação Cidade Jardim, em São Paulo, além de jardins de chuva em Belo Horizonte e Contagem e sistemas de drenagem com SBN em condomínios residenciais no interior paulista.
Paisagismo e urbanismo engajados
Um dos modelos mais simples de SBN são os jardins de chuva, que têm se mostrado uma solução eficaz para reduzir alagamentos em pontos estratégicos da cidade (especialmente, áreas rebaixadas de ruas e avenidas), porque absorvem parte da água que escorreria superficialmente. O conceito refere-se a um tipo de um canteiro de plantas com profundidade maior (cerca de 1,5 metro) construído com uma base drenante em pedras, pedriscos, areia, terra vegetal e, por fim, plantas. A capital paulista é exemplo nacional dessa SBN, com quase 340 jardins do tipo já implantados e a meta de encerrar 2024 com 400 unidades em todo o município.
“Esses jardins funcionam como esponjas, diminuindo em até 30% o volume de água que escorre pela rua em uma condição média de chuva. Além disso, eles são 100% sustentáveis, de baixíssimo custo e manutenção, transformam áreas degradadas em jardim, são educativos e mobilizam a comunidade local”, afirma o arquiteto Luiz Jamil Akel, assessor da Secretaria das Subprefeituras, que coordena o programa nas 32 subprefeituras da cidade.
Projetos
Quem também se entusiasma com o potencial da vegetação na adaptação das cidades às mudanças do clima é o botânico e paisagista Ricardo Cardim. Ele comanda (ao lado da arquiteta Alessandra Caiado) o escritório Cardim Paisagismo, especializado em urbanismo e projetos para grandes empreendimentos e áreas urbanas. “Fazemos um tipo de ativismo pelo verde e a biodiversidade na cidade. Nosso trabalho é para que os empreendedores e o poder público entendam que paisagismo não é decoração de arremate, mas uma estratégia fundamental hoje, especialmente pelos benefícios ecossistêmicos que as árvores e demais plantas podem oferecer”, diz.
Para ele, é preciso ressaltar que não são apenas as populações mais vulneráveis que ocupam áreas de risco, mas também o urbanismo de alto padrão, que passam por cima de leis para ocupar e, portanto, degradar áreas de proteção ambiental que são de extrema importância para o equilíbrio do ecossistema. “Lidar com as mudanças climáticas requer aumentar consideravelmente as áreas permeáveis e a cobertura arbórea nas cidades. É a ciência que diz isso, não é achismo, não é modismo, e o setor privado já começou a perceber isso”, acrescenta Cardim, que já assinou mais de 120 projetos em todo o país.
Edifícios e bairros mais resilientes
Aqui no Brasil, a Green Building Certification Inc. (GBCI), responsável pela certificação LEED do urbanismo sustentável, também está de olho em novos parâmetros relacionadas ao momento atual de emergência climática, a serem incorporados na quinta versão do selo, prevista para o início de 2025. “Anos atrás, olhávamos muito para consumos de energia e água. Superamos essa fase e hoje, embora o foco maior seja a descarbonização dos edifícios, também precisaremos incluir no processo de certificação tópicos relacionados à resiliência dos empreendimentos. Algo que deve ser contemplado já na próxima versão do LEED”, afirma o economista Sandrino Beltrane, Head de Desenvolvimento de Negócios no Brasil pelo GBCI Inc.
Em Porto Belo, Santa Catarina, o empreendimento Vivapark Porto Bello, da Vokkan, ainda em construção, conquistou o certificado Platinum de Planejamento e Design de Comunidades. O urbanismo do bairro planejado contou com uma análise de vulnerabilidade. Além disso, conta com um plano de resiliência para fortalecer a comunidade frente aos riscos das mudanças climáticas, elaborado pela Forte Desenvolvimento Sustentável. A consultoria elencou estratégias de mitigação e adaptação dos riscos, além de políticas de intervenção. “Um exemplo disso é o sistema de drenagem do bairro, que inclui dois grandes lagos capazes de suportar o escoamento superficial em eventos de precipitação extrema, evitando inundações e alagamentos”, conta Eduardo Mattos, gerente de Sustentabilidade da Forte, que aposta na prevenção como melhor remédio.
Fonte: Giuliana Capello / Casa Vogue
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