Produtos da amazônia: com recurso privado, organizações buscam profissionalizar a bioeconomia

Aumento de exposição em gôndolas de mercado ajuda a aumentar a oferta de produtos da sociobiodiversidade. Contudo, é preciso flexibilizar de contratos comerciais

Café tipo robusta
Café tipo robusta produzida em Apuí, no Amazonas — Foto: Idesam/ Divulgação -

A quase 1.500 quilômetros a sudeste de Manaus, Apuí, no Amazonas, é conhecido por ter sido, em 2022, o município com o índice mais alto de desmatamento do país, segundo ranking do MapBiomas, com a pressão vinda especialmente do avanço da agropecuária e extração de produtos. Mas também é onde o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) apoia um dos projetos mais promissores de valorização financeira da floresta em pé: o Café Apuí Agroflorestal.

Produzido a partir de técnicas de agrofloresta em pequenas propriedades rurais da região, o Café Apuí é um case de produto da biodiversidade amazônica que venceu as várias barreiras – de qualidade, escala, logística e aceitação do público – para chegar ao grande mercado consumidor, em São Paulo. Hoje, é possível comprar um pacote de 250 gramas de grãos moídos em algumas lojas da rede de supermercados Carrefour e também em marketplaces, como o da Amazon e Magazine Luiza.

Mas, para um consumidor paulista conseguir comprar o produto foram anos de aperfeiçoamento, investimentos e uma rede de parceiros. Ana Maria Guidi, analista da iniciativa de Serviço Ambiental e Carbono Neutro do Idesam, conta que a organização identificou o potencial da região de Apuí para produzir em escala o café tipo robusta após mapear possíveis atividades econômicas locais e constatar, com estudos, que aquela espécie poderia ser cultivada na floresta. “Algumas famílias tinham pés em seus quintais, herança da época da ditadura militar, em que migrantes, especialmente do Paraná, vieram ocupar a região e trouxeram mudas”, conta.

Produtos extraídos

Foram anos de capacitações sobre técnicas de agricultura orgânica e sustentável, verificações e testes e o desenvolvimento da infraestrutura para chegar aos grandes centros urbanos do país. “O sistema agroflorestal tem condições bem diferentes do de monoculturas; ele dá certo em consórcio com outras árvores frutíferas e madeireiras”, diz Guidi. Boa parte das áreas plantadas estão em terrenos já desmatados, que estão sendo restaurados pelo projeto.

O desafio agora é expandir a produção. “Precisamos captar recursos para implementar o sistema agroflorestal em mais áreas”, conta Guidi. Contudo, não é só uma questão de injetar dinheiro. Em lugares como Apuí, tudo é mais complexo. Primeiro, é preciso fazer verificação de novas propriedades. Segundo, ter pessoas para realizar a capacitação dos produtores para atuarem com produção orgânica e sustentável. Terceiro, conseguir insumos suficientes. A aquisição de mudas se mostrou um dos principais obstáculos.

“Trazíamos mudas de Porto Velho (RO), a 600 quilômetros debaixo do sol quente. Perdíamos muitas mudas”, comenta a analista do Idesam. Cerca de um terço do orçamento do projeto acabava indo para o transporte e frete das mudas. O jeito foi desenvolver a ideia de ter um viveiro próprio na cidade.

Plantação de café em sistema agroflorestal
Plantação de café em sistema agroflorestal do Café Apuí — Foto: Idesam/ Divulgação

Perspectivas

A projeção é que, com isso, a produção anual de mudas pode chegar a 250 mil. Até agora, a recuperação do solo e a introdução do cultivo de café em mais propriedades, demandou 2.220 mudas de café e 632 mudas nativas, de plantas florestais e frutíferas que compõem o consórcio agroflorestal para o café. Também está no plano a criação de um banco de armazenamento de sementes para escalar a produção de mudas florestais.

O Carrefour é o principal patrocinador do viveiro. Ao todo, R$ 6 milhões serão liberados para a estruturação da atividade, que inclui a compra de insumos para restaurar cerca de 190 hectares (o equivalente a 1,9 milhões de metros quadrados) até 2027, melhorias na indústria de beneficiamento para agregar mais valor à commodity, e consultoria de qualidade.

“Queremos que ele seja um café vendido em cafeterias gourmet em grandes centros”, diz Guidi. Sobre o beneficiamento, hoje, além do café em grãos, o Apuí vende o café como insumo para a marca de chocolates com ingredientes amazônicos Nakao e o óleo verde para a Inatu.

A parceria com a rede de mercados vai além do aporte para o viveiro. O Apuí é um dos produtos que fazem parte de um projeto piloto do Carrefour para valorizar itens da sociobiodiversidade brasileira. Susy Yoshimura, diretora de Sustentabilidade do Carrefour, conta que hoje três lojas da rede possuem gôndolas especiais “Floresta faz bem”, com cerca de 20 produtos do tipo. Até o fim do ano, serão 50 unidades participantes da iniciativa.

Plantio de árvores
Capacitação com produtores do Café Apuí Agroflorestal: pés são plantados em combinação com árvores florestais e frutíferas do bioma — Foto: Idesam/ Divulgação

Casos de sucesso

Guidi, do Idesam, conta que a demanda tem aumentado e ajudado a puxar a oferta do café. “De 2012 até 2021, implementamos 70 hectares de café. Só em 2023, foram 75 hectares. Por anos crescemos em pequenas parcelas, até ganhar uma escalabilidade maior e perspectiva de expandir ainda mais”, diz.

Além de aumentar a exposição, o Carrefour também ajuda esses fornecedores a entender como podem vender mais. “Isso inclui pesquisas para saber sobre qualidade, quantidade, embalagem e preço”, conta Yoshimura. Ela explica que colocar para rodar um projeto do tipo não é tão simples quanto parece. Foi preciso, por exemplo, mapear riscos, flexibilizar alguns pré-requisitos do setor de compras e mudar regras contratuais e comerciais, que dependem de muitas aprovações.

O Apuí é um dos projetos apoiados indiretamente. O Carrefour já assinou cheques para cinco instituições que trabalham com combate ao desmatamento, recuperação de áreas degradadas e projetos que apoiem a bioeconomia local. Ao todo, R$ 28 milhões já estão comprometidos com as iniciativas. Mas, conta ao Prática a executiva, até 2027, esse montante deve somar R$ 50 milhões.

A empresa estima que esses projetos impactem 1,2 milhões de hectares (equivalente a aproximadamente oito vezes a área da cidade de São Paulo), beneficiando mais de 6 mil pessoas e 230 mil propriedades na Amazônia até 2027.

Outra organização parceira contemplada pela iniciativa do Carrefour é o Imaflora. Patricia Cota Gomes, diretora de Sociobiodiversidade do Imaflora, conta que um dos obstáculos a projetos de bioeconomia prosperarem envolve o financeiro.

Apoio internacional

Justamente pelas barreiras logísticas e de escalabilidade, os custos são altos e muitas iniciativas dependem ainda de capital subsidiado ou de compradores que aceitem pagar mais caro por entender o benefício adicional que seus produtos agregam. Além disso, a remuneração adequada para quem produz é primordial para manter os produtores focados e engajados, especialmente os jovens, e diminuir a tentação das promessas de dinheiro fácil vindo de atividades ilegais.

Por isso, conta Gomes, o Imaflora está desenvolvendo mecanismos de equalização de preços para garantir preços justos e éticos. “Não dá para falar sobre viabilidade da sociobio economia se não entendermos que há uma série de serviços de preservação sendo prestados e não apenas produtos em si”, diz. Ela cita relatório de 2021 das Nações Unidas que as populações tradicionais são apenas 5% do mundo, mas são responsáveis pela preservação de territórios que abrigam 80% da biodiversidade global. Só no Brasil, protegem cerca de um terço das florestas.

Os aportes do Carrefour e da Fundação Zurich somam R$ 3 milhões. É necessário para desenhar a estrutura de Pagamento por Serviço Ambiental (PSA) que contemple a diversidade de produtos e sua complexidade e ofereça um prêmio pelo cuidado com o meio ambiente. “Agora temos recursos para desenhar um Mecanismo Viabilizar de Cadeias, como estamos chamando. Pretendemos, com dados, encontrar formas de pagar prêmios adicionais para as populações tradicionais que fazem parte da Rede de Origens Brasil”, conta.

Cacau partido em mãos do produtora
Imaflora organiza projetos de incentivo ao cacau no Pará. Agora, objetivo é adicionar valor ao trabalho de preservação de produtores — Foto: Rafael Salazar/Imaflora

Programa brasileiro

Gomes conta que a ideia é começar pelos fornecedores da Rede de Origens Brasil porque a organização já tem controle e rastreabilidade. A Origens Brasil é um programa idealizado e gerenciado pelo Imaflora desde 2016, que busca conectar os elos da cadeia produtiva, ou seja, produtores, associações, cooperativas e empresas que compram os produtos. “O objetivo é promover o comércio ético e manter a Amazônia em pé”, afirma a diretora.

Todas as dezenas de itens comercializados com o selo ‘Origens Brasil’ passam pelo crivo do instituto e são rastreados. “Sabemos de onde vem, quantos hectares envolvidos, quanto de floresta em pé, indicadores de renda e socioeconômicos de cada quilo de produto comercializado na rede”, conta Gomes. A iniciativa chegou a levar um prêmio internacional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em 2019. Entre os produtos vendidos estão óleos da flora amazônica, pirarucu, geleias, entre outros. São 4 mil produtores cadastrados, incluindo 76 diferentes etnias, e R$ 24 milhões em negócios comunitários.

Fundos de florestas

Investimentos em florestas não são novidades, mas têm se sofisticado para deixar de ser um recurso que olha apenas a árvore em pé para preservar também todo o ecossistema abaixo da copa das árvores.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) estão ativamente oferecendo recursos para desenvolver a bioeconomia amazônica. Nesta semana, o BID anunciou a renovação dos investimentos no programa Amazônia Para Sempre, agora com US$ 4,2 bilhões a serem disponibilizados.

Já o BNDES, mantém o Floresta Viva, iniciativa destinada a apoiar projetos de restauração ecológica com espécies nativas em todos os biomas brasileiros. E, em maio, firmou contrato com três entidades selecionadas no edital Restaura Amazônia, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática (MMA). Com recursos de R$ 450 milhões do Fundo Amazônia, o Ibam, Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS) e a CI Brasil vão atuar na gestão dos projetos de reconstrução da floresta no Arco da Restauração.

Na iniciativa privada, há exemplos de empresas, como o Carrefour, que investem para incentivar a bioeconomia e preservar a biodiversidade e fundos de venture capital interessados em comprar participação em startups com potencial de crescimento na região.

A gestora de venture capital KPTL e o Fundo Vale, que coordena e implementa ações para a meta florestal da mineradora Vale, por exemplo, lançaram em 2022 um fundo de investimento em participações de startups que gerem impacto positivo na área de Floresta e Clima. A expectativa é investir R$ 200 milhões em cinco anos.

Invetimentos

Este ano, a KPTL anunciou outra parceria, desta vez com o BID, para criar um fundo oltado para empresas da bioeconomia na região da floresta Amazônica, o Amazonia Regenerate Accelerator and Investment Fund. De largada, o BID Lab, braço de inovação do BID, aportou US$ 11 milhões, mas o plano é atrair mais US$ 19 milhões com investidores nacionais e internacionais nos próximos meses. Além do Brasil, ele investirá em outros países que abrigam a floresta – Equador, Bolívia, Peru, Colômbia, Guiana e Suriname.

No Carrefour, além do fundo de investimento em preservação, o grupo mantém ainda um “Comitê de Florestas”, com cinco especialistas de fora da companhia – o pesquisador Carlos Nobre e representantes de organizações parceiras, como Embrapa, Imaflora e The Nature Conservancy (TNC) – que trazem insights de como a empresa pode evoluir na temática, seja na responsabilidade social, e, principalmente, como negócios.

“Esse tipo de projeto traz riqueza para a empresa também”, comenda Yoshimura, se referindo à adaptação que todos os negócios precisarão fazer com as mudanças climáticas e o endurecimento da legislação, que vem exigindo na União Europeia, por exemplo, onde é a sede do grupo, rastreabilidade. “É uma pauta global do Carrefour liderar a temática de sistemas alimentares”, adiciona.

Toda a carne vendida nas lojas, por exemplo, passa por um processo de rastreabilidade em parceria com a TNC. O objetivo é coibir a prática de desmatamento para pecuária. A organização também foi contemplada com investimento recente, justamente para desenvolver soluções escaláveis que combatam o desmatamento na indústria de carne bovina na Amazônia e no Cerrado.

Metas futuras

A meta global do Carrefour é reduzir em 70% suas emissões até 2040. “Nos escopos 1 e 2, promovemos a troca de sistema de refrigeração, por exemplo. No escopo 3, mudanças de processo estão sendo feitas para comprar mais de produtores locais”, diz. A empresa já tem um programa de engajamento com os 100 maiores fornecedores.

Mas há outros ganhos. Ela conta que os próprios executivos que se envolvem na iniciativa se oferecem para prestar mentoria para as empresas fornecedoras, o que não apenas os deixa mais entusiasmados com o trabalho, como também os leva a aprender e estudar mais sobre os assuntos.

Fonte: Naiara Bertão / o Valor

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