A batalha pelo papel higiênico, as prateleiras vazias dos supermercados e a ansiedade de saber quando os suprimentos estarão disponíveis. Crises internacionais como a pandemia do coronavírus mostraram a sensibilidade com que nossa rede de suprimentos reage às interrupções globais. Com as mudanças climáticas, a gravidade e a frequência dos extremos climáticos aumentarão. E isso sobrecarregará as cadeias globais de suprimentos.
Nossa rede global de suprimentos é composta por 300 milhões de empresas ligadas por 12 bilhões de relações comerciais. Um século de globalização, impulsionado pela teoria econômica clássica, resultou na distribuição da produção em todo o mundo. Na busca por maior produtividade e custos mais baixos, o processo de produção tornou-se altamente especializado, aumentando a interdependência entre os participantes de uma única cadeia de suprimentos. Atualmente, nada menos que 63% do comércio mundial é transfronteiriço.
No entanto, a complexidade da rede de abastecimento é seu maior desafio quando se trata de mudanças climáticas. De fato, com o aquecimento global, eventos climáticos extremos, como inundações, ondas de calor, secas, tempestades e ciclones tropicais, se tornarão mais frequentes e severos. Embora seja amplamente conhecido que cada território terá que lidar com um clima em transformação, também teremos que enfrentar os impactos negativos de desastres climáticos que ocorrem em locais mais distantes.
Cadeias globais e eventos extremos
Tomemos o recente furacão Milton como um caso exemplar. O ciclone tropical atingiu a Flórida em 9 de outubro, forçando a evacuação de 6 milhões de pessoas, destruindo a infraestrutura e os estoques e interrompendo serviços essenciais (ou seja, água, gás e eletricidade).
A desaceleração da produção local pode ser sentida até o Brasil, pois a Flórida é um importante parceiro comercial (US$ 22,6 bilhões em mercadorias trocadas em 2022), fornecendo suprimentos médicos e farmacêuticos e maquinário industrial e elétrico essenciais para a indústria brasileira. Isso pode levar a choques de oferta e demanda no Brasil. Por exemplo, após o tsunami de 2011 no Japão, os Estados Unidos sofreram uma queda de cerca de 1% no total de manufaturas e de quase 2% na produção de bens duráveis.
Da mesma forma, as importações e exportações tradicionalmente dependem de alguns centros comerciais, como portos e aeroportos, aumentando a vulnerabilidade do comércio global a riscos climáticos individuais. O principal centro da Flórida, o Porto de Tampa Bay, só será reaberto para navios de carga em 4 a 6 semanas, o que pode causar atrasos e gargalos nas cadeias de suprimentos globais.
A necessidade urgente de dados
Atualmente, estamos mal equipados para lidar com o impacto das mudanças climáticas nas cadeias de suprimentos globais. Em sua maior parte, não temos dados suficientes para identificar e lidar com os riscos climáticos nas cadeias de suprimentos globais. Os governos nacionais dependem de modelos de entrada e saída de vários países e setores. Essa ferramenta fornece informações sobre a exposição direta a outros países, mas não sobre as dependências indiretas. Da mesma forma, as próprias empresas raramente conhecem seus fornecedores de Nível 2 e Nível 3.
No entanto, muitas vezes já existem soluções para melhorar a disponibilidade de dados. Muitos governos em todo o mundo adotaram políticas obrigatórias de faturamento eletrônico. Por meio dessas plataformas, os governos têm acesso a dados de transações em nível de empresa em tempo hábil. Outros países implementaram normas de divulgação da cadeia de suprimentos.
O Brasil exige que as empresas que prestam serviços a entidades públicas divulguem informações sobre seus fornecedores. Seria possível reconstruir uma rede de produção a partir desses dados. Entretanto, até o momento, nenhum país usou esse conjunto de dados para avaliar os riscos sistêmicos decorrentes do contágio de choques climáticos nas redes de suprimentos.
Brasil é instado a liderar esforços
Como detentor da presidência do G20, o Brasil tem uma oportunidade crítica de assumir um papel de liderança na construção de resiliência e na mitigação de riscos no comércio global. Ao tomar medidas decisivas, o Brasil pode não apenas proteger sua própria economia, mas também contribuir para a estabilidade das cadeias de suprimentos globais.
Vemos três maneiras pelas quais o Brasil poderia liderar esse esforço:
1. Incentivando a coleta de dados a nível de empresarial
Para avaliar e mitigar com eficácia os riscos climáticos, o Brasil deve promover a coleta de dados detalhados a nível empresarial sobre as cadeias de suprimentos nacionais. A disponibilidade de dados granulares sobre transações entre empresas é essencial para compreender as vulnerabilidades existentes nas redes de suprimentos.
2. Estabelecendo um quadro de cooperação para avaliação do contágio de riscos climáticos
Para aumentar a resiliência em nível global, os países devem trabalhar juntos para criar uma estrutura de cooperação voltada para a compreensão dos impactos sistêmicos das mudanças climáticas nas redes de suprimentos globais. Essa estrutura poderia facilitar o compartilhamento de dados, metodologias e práticas recomendadas, permitindo que as nações identifiquem riscos e vulnerabilidades comuns. A cooperação internacional também promoverá respostas coordenadas às interrupções relacionadas ao clima, minimizando o impacto econômico ao garantir que o sistema de comércio global possa se recuperar rapidamente dos choques na cadeia de suprimentos.
3. Promovendo a colaboração internacional em questões críticas
Por fim, o Brasil deve defender uma colaboração internacional mais forte em questões críticas da cadeia de suprimentos, especialmente aquelas relacionadas a alimentos e suprimentos médicos. Esses setores são especialmente vulneráveis a interrupções induzidas pelo clima, e a escassez pode ter consequências terríveis para a saúde global e a segurança alimentar.
Ao trabalhar com outras nações e organizações para desenvolver estratégias compartilhadas para mitigar esses riscos, o Brasil pode desempenhar um papel fundamental na garantia do fluxo de bens essenciais, reduzindo as vulnerabilidades globais aos impactos climáticos e garantindo a estabilidade das principais cadeias de suprimentos em face das crescentes ameaças climáticas.
Ao liderar esses esforços, o Brasil tem o potencial de moldar estratégias globais para a resiliência climática. Além disso, poderá estabelecer um exemplo poderoso a ser seguido por outras nações.
Fonte: Mathilde Bossut / The Conversation
* Mathilde Bossut é Doutoranda em Riscos Climáticos e Meteorológicos no Instituto Federal Suíço de Tecnologia, em Zurique
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