No final de junho, com a criação da Estratégia Brasileira de Economia Circular, o Brasil se juntou ao clube de países com planos oficiais em curso para mudar parques industriais e agropecuários, passando do modo linear de produção, que esgota recursos naturais em busca do lucro, para a economia circular, em que o sistema é redesenhado para que, sim, haja lucro, mas a matéria-prima possa ser, ao final do ciclo de vida dos produtos, reutilizada de forma eficaz e com valor agregado, minimizando impactos ambientais.
Não se trata de uma cadeia de reciclagem, apenas, mas de uma nova concepção de indústria. Algo que exige manobras radicais, como um “loop” aéreo. Na realidade da economia circular, carros e computadores são projetados com peças fáceis de serem desmontadas e reinseridas na cadeia para produzir novos carros e computadores, por exemplo.
No agro, as cadeias produtivas devem ser regenerativas, adotando métodos que não esgotem o solo, ajudem ecossistemas a recompor os estoques de água na natureza e aumentem a resiliência climática. A ideia da conservação de recursos, a propósito, está na base do conceito de “fechamento do loop” na economia circular, permitindo a preservação e o uso eficiente de recursos finitos.
Todas essas são metas possíveis, mas que exigem uma revolução cultural e tecnológica. Por isso, apesar do decreto assinado pelo presidente Lula, o trabalho de redesenhar a produção do país deve levar “uma geração” para se tornar uma realidade, segundo avaliação do próprio governo federal em conversa com o portal Um Só Planeta.
Tecnologia e o consumo consciente
O projeto, contudo, atrai setores gigantes da economia e ocorre em ritmo acelerado, segundo o secretário de descarbonização, economia verde e bioindústria do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Rodrigo Rollemberg. A iniciativa do governo tem potencial de impulsionar políticas públicas para setores como a metalurgia, mineração, construção civil e agropecuária, entre outras.
“É uma economia circular, não ambientalismo. Funciona, gera lucro, emprego, aumenta PIB, e faz isso tudo reduzindo [emissões de] carbono, regenerando biodiversidade e reduzindo poluição”, explica Luisa Santiago, diretora para América Latina da Fundação Ellen MacArthur, organização britânica referência no tema, que prestou consultoria ao governo federal no processo de definição da estratégia nacional.
Até o final do ano, espera-se formar o fórum que reunirá governo, indústria e sociedade civil, para delinear políticas setoriais, passar pelo processo de consulta pública e então entregar o documento que deve reger a transformação industrial que, em tese, pode reduzir sensivelmente a extração de recursos naturais, como minérios, por exemplo, transformar o agro e multiplicar oportunidades de financiamento, sendo a aprovação de um mercado regulado de créditos de carbono um fator decisivo.
Por onde deve começar a transformação
Segundo o secretário Rollemberg, os setores da indústria como aço, alumínio e cimento, que emitem grandes quantidades de gases que intensificam o aquecimento global, são os maiores interessados em desenvolver tecnologia para mudar processos de produção e buscar uma condição mais próxima do netzero, quando as companhias conseguem deixar de emitir gases estufa, ou ao menos cortam consideravelmente esse subproduto e compensam o restante financiando energia limpa ou restauração florestal, recebendo créditos de carbono.
“A vinhaça da cana era um poluente que se transformou em matéria prima para biometano. Resíduos do café, do cacau, do açaí… Estamos percebendo que podem se transformar em fontes para a produção de bioprodutos, biocombustíveis. A evolução tecnológica tem demonstrado que a economia circular pode gerar muitas oportunidades de negócios e de trabalho”, afirma Rollemberg.
Consumo brasileiro
Na visão da executiva da Fundação Ellen MacArthur, o Brasil tem grande potencial de reprogramar plantas industriais com as de eletroeletrônicos. Por exemplo, os de linha branca (geladeira, fogão, ar condicionado) com a inclusão do modelo de negócio do recondicionamento. Dessa forma, adotando práticas que gigantes do mercado mundial já exercem, como a Apple nos Estados Unidos. A fabricante californiana recebe aparelhos usados, os recondiciona completamente, dando garantia de um ano, e revende ao mercado em embalagens novas, com preços atrativos. Nessa abordagem, um único produto pode gerar lucro diversas vezes, e servir a vários usuários. “É preciso olhar para a competitividade”, avalia Santiago.
A sinergia entre cadeias produtivas também pode ser um motor para o estabelecimento da economia circular no país. Considerando setores como o têxtil, ou a fabricação de alimentos, uma legislação que incentive o uso de insumos. Por exemplo, algodão ou hortaliças, gerados a partir de práticas comprovadamente sustentáveis. Assim poderão criar um efeito dominó que termine acomodando o sistema dentro do trilho da circularidade.
Incentivos e punições
Criar o ambiente normativo para regular e incentivar novos processos é a meta do governo federal com a estratégia, além da aprovação do PL (Projeto de Lei) da Política Nacional de Economia Circular, que tramita no Congresso, assim como o PL que regula o mercado de carbono. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), criado em 1969, é um instrumento ativo para alavancar essa transição, afirma Rollemberg, citando uma verba anual de cerca de R$ 13 bilhões que pode ser aplicada em projetos de circularidade.
“Na hora que o Brasil regulamentar o mercado de carbono e a economia circular, isso vai ser um grande estímulo para as usinas eólicas, o combustível sustentável de aviação, que deve usar muita biomassa, bioinsumos. E tendo junto uma legislação, com o PL do Hidrogênio Verde e o PL de Economia Circular, todos esses esforços juntos vislumbram uma oportunidade para o Brasil ocupar uma liderança mundial em uma economia de baixo carbono, com empregos qualificados em uma neoindustrialização a partir de novas matrizes energéticas, com sustentabilidade ambiental”, analisa Rollemberg.
Na prática
Regras bem definidas são essenciais. Assim, proporcionando incentivos para aqueles que adotarem práticas circulares. Caso contrário, “castigos” para os que mantiveram métodos que vão na contramão da crise do clima e da exaustão dos recursos naturais, avalia Carlo Pereira, CEO do Pacto Global da ONU no Brasil.
“Temos uma política complementar, que é a política de resíduos sólidos de 2010, e temos visto como é difícil [progredir]. Ambos os projetos [resíduos sólidos e economia circular] tratam de mudanças significativas em setores industriais e na sociedade como um todo. É importante, pois seja na sociedade ou nas empresas, há uma questão cultural muito forte. Quando há incentivo econômico, a coisa acontece.”
— Carlo Pereira, CEO do Pacto Global da ONU no Brasil
Outro incentivo ao setor produtivo deve vir dos consumidores, avaliam especialistas. Iniciativas como o Selo Verde, criado pelo governo federal para identificar produtos de origem sustentável, podem servir de indicativo de produtos gerados em cadeias circulares. “O consumidor trabalha em empresas, é investidor, um cidadão que tem diferentes papéis. Há uma tendência clara de acúmulo de conhecimento exigindo padrões mais altos relacionados à economia circular. Em um ciclo, podemos ter reguladores, que escutam a exigência da sociedade, investidores, que percebem esse movimento e veem risco financeiro em empresas desatentas à sociedade, e assim cria-se um ciclo virtuoso em que todo mundo vai se mexer”, avalia Pereira.
Fonte: Marco Britto / Um Só Planeta
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