Muito já se sabe sobre as consequências das mudanças climáticas para o meio ambiente e para as espécies animais e de plantas que nele vivem. Mas ainda não se sabe tudo e as descobertas de alguns estudos contrariam o que se tinha como certo. É o caso de um trabalho realizado por pesquisadores brasileiros, publicado na revista Journal of Arid Environments, que demonstrou que répteis (lagartos e serpentes) que vivem em solos arenosos secos e quentes serão prejudicados e não favorecidos pelo aquecimento global como se pensava.
Até a realização da pesquisa, era quase um consenso de que essas espécies seriam beneficiadas com o aquecimento global nas próximas décadas, porque haveria supostamente um aumento das áreas áridas e arenosas adequadas a sua vida por elas já estarem adaptadas a altas temperaturas.
“Nosso trabalho surgiu a partir da preocupação com os répteis adaptados a solos arenosos da Diagonal de Formações Abertas da América do Sul (Caatinga, Cerrado e Chaco argentino e paraguaio)”, conta Júlia Oliveira, primeira autora do trabalho, realizado como parte de seu mestrado na Universidade Estadual do Maranhão (Uema). “Tais animais são, ainda, pouco estudados e não se sabia ao certo como as mudanças climáticas poderiam afetá-los.”
Sua orientadora, Thaís Guedes, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), estuda a fauna de répteis da Caatinga há 24 anos. “Sempre me incomodei com algumas afirmações que diziam que se esses espécies, que evoluíram e se adaptaram a ambientes mais áridos, estariam então aptos a viver em um mundo mais quentes e por isso não seriam impactados pelas mudanças climáticas”, explica.
Ela diz que a ideia da pesquisa surgiu dessa sua inquietação de “será mesmo que isso é verdade? Só acredito testando”. “E na época, a Júlia estava iniciando o mestrado comigo e direcionei essa pergunta para que fosse o tema de sua pesquisa”, diz. “Depois, ampliamos o questionamento incluindo espécies também de outras áreas e vegetação aberta (o Cerrado e o Chaco) na América do Sul.”
O estudo
O estudo tinha dois objetivos principais. O primeiro era investigar, no clima do presente, onde essas espécies poderiam ocorrer e não foram ainda estudados. “Então mapeamos áreas de ocorrência potencial delas, com clima e condições de solo adequadas”, conta Guedes. “O segundo era investigar, em dois tempos futuros, 2040 e 2060, em condições de efeito estufa consideradas otimistas e pessimistas, onde esses animais vão ocorrer e se suas áreas de vida (comparada com o clima do presente) vão ser maiores, menores ou se deslocar para norte, sul, leste ou oeste.”
A pesquisa teve como alvo cinco espécies de lagartos e cinco de serpentes psamófilas (que vivem em solos arenosos), que ocorrem ao longo da Caatinga, Cerrado e Chaco. “Utilizamos mais de três mil registros de ocorrências delas, obtidas em coleções e literatura científicas, dados climáticos e de solo e técnicas de modelagem de sua distribuição”, conta Oliveira. “A ideia era avaliar as alterações na distribuição geográfica desses répteis diante cenários climáticos atual e futuro, com diferentes emissões de gases do efeito estufa.”
Os resultados dos estudos revelaram que as análises para o clima do presente indicam áreas geográficas onde essas espécies podem ocorrer, mas ainda não foram estudadas, indicando que essas regiões são potenciais para estudos futuros de herpetologia. “Os répteis dos locais abertos, até mesmo esses que vivem enterrados na areia, serão impactados com as mudanças climáticas”, diz Guedes.
Isso implica que haverá uma perda de biodiversidade, com algumas espécies sendo extintas. Pois a pesquisa mostra 100% de perda de suas áreas de vida no clima futuro. “Vimos também que a configuração e tamanho das unidades de conservação não serão capazes de assegurar a manutenção da nossa biodiversidade no futuro – já não são no presente”, explica a pesquisadora.
Espécies mais afetadas
De acordo com Oliveira, em todos cenários climáticos simulados houve alteração da área de distribuição das espécies, sendo a perda delas predominante. “No de 2040 otimista, o lagarto-do-rabo-vermelho (Vanzosaura savanicola) e o calanguinho-de-rabo-azul (Micrablepharus maximiliani) perderam 83,77% e 67,35% de seu território, respectivamente”, diz.
No cenário otimista de 2060, duas espécies apresentaram perda total de sua área de distribuição geográfica (100%), sendo consideradas extintas nesse cenário. São elas as serpentes cobra-corredeira (Phalotris matogrossensis) e falsa-coral (Rodriguesophis iglesiasi). “O lagarto-do-rabo-vermelho e o calanguinho-de-rabo-azul, por sua vez, apresentaram redução de a 97,62% e 93,1% de seus habitats, respectivamente, enquanto o lagartinho-do-folhiço (Acratosaura mentalis) perde 58,95% e outra espécie de lagarto-do-rabo-vermelho (Vanzosaura rubricauda) 68,09%”, informa Oliveira. “Este foi o pior cenário climático estudado.”
Por uma ótica pessimista de 2040, duas espécies apresentaram as maiores perdas de área de distribuição: o lagarto-do-rabo-vermelho (98,27%) e o calanguinho-de-rabo-azul (76%). No pior cenário em 2060, as maiores reduções de áreas de distribuição também foram para esses dois lagartos. Os números correspondem a 98,27% para a primeira e 97,09% para a segunda.
Ações
Para Oliveira, os resultados do estudo indicam áreas que devem ser prioridades para pesquisas de campo. Já que são propícias para a ocorrência de répteis psamófilos (distribuição das espécies-alvo, de outras ou novas), mas que ainda não foram estudadas. “Além disso, nosso trabalho evidencia a necessidade de medidas públicas dinâmicas para a conservação delas”, acrescenta.
Ela também defende que é preciso aumentar o número de áreas de proteção na Diagonal de Formações Abertas da América do Sul. Além disso, elas precisam ser expandidas e criadas levando-se em consideração a ocorrência e vulnerabilidade de répteis psamófilos diante das mudanças climáticas.
Guedes, por sua vez, alerta ainda que há necessidade de uma mudança na política global do meio ambiente. Isso, através de países discutindo as alterações climáticas com a devida seriedade e cumprindo os acordos internacionais para o meio ambiente. “Pelo que digo aqui, já pode se perceber que não é algo trivial de ser pelo menos amenizado”, afirma.
Fonte: Evanildo da Silveira / Um Só Planeta
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